Nilton Vasconcelos*
Temos salientado em outras
oportunidades que a implantação da indústria automotiva baiana depende do
desfecho da crise coreana. Primeiramente, porque os problemas enfrentados pela
Coréia decorrem não apenas do modelo de desenvolvimento e do grau de endividamento
assumido por aquele país, mas de uma crise mais ampla do processo de
financeirização das economias em todo o mundo, ao qual o Brasil também foi
atrelado, de modo que um resultado negativo para os coreanos repercutirá
fortemente em nosso país.
As recentes medidas adotadas pelo
governo brasileiro para reagir à saída maciça de capitais, e que provocou a redução
pela metade da expectativa de crescimento do produto interno para o próximo
ano, são um exemplo do tipo de repercussão a que estamos sujeitos. Em segundo
lugar, a vinda das montadoras depende da reestruturação que os chaebols estão
sofrendo, especialmente depois das exigências do Fundo Monetário Internacional,
apresentadas como condição para o socorro financeiro.
Mas poder-se-ia argumentar que o
regime automotivo obteve a adesão, no caso da Bahia, de seis empresas,
portanto, o estado não dependeria exclusivamente da Asia e Hyundai. No entanto,
o quadro sofreu alterações desde o encerramento do prazo, em maio último. Vejamos:
as motos Daelim que, na Bahia, seriam fabricadas pelo mesmo grupo da Asia
Motors Brasil (1), vivem o mesmo dilema da empresa brasileira que é dona do negócio;
ou seja, aguarda que nos próximos meses fiquem mais claros as coisas na Coreia;
a companhia que produziria as motonetas Piaggio, enfrenta os desafios decorrentes
de uma abrupta sucessão da liderança empresarial da fabricante italiana;
restaria, neste segmento, a italiana Malagutti, que já identificou as
instalações fabris que utilizará e deve anunciar informações mais detalhadas
sobre o inicio da produção. A montadora tcheca Skoda, primeira a anunciar uma
fábrica de caminhões em solo baiano, encaminha lentamente seu projeto, cujo
impacto na economia, pelo porte da produção, deverá ser pouco representativo.
Restariam, assim, as duas
corenas, que através de seus porta-vozes brasileiras apresentaram planos mais
concretos, muito embora os investimentos com instalações físicas até o momento
tenham sido realizados exclusivamente pelo governo baiano.
O que dizer da General Motors que
ainda não divulgou onde instalará sua fábrica do Nordeste? Tendo protocolado
seu projeto junto ao governo federal em tempo hábil, a GM está apta a usufruir
integralmente dos benefícios do regime automotivo, sem os cortes posteriores à
edição do pacote fiscal que reduziu todos os incentivos. Pois é, passados seis
meses a GM não anunciou seus planos e, pelo visto, deverá aguardar o
desdobramento da crise que provocou uma redução geral nas metas de produção da
indústria brasileira.
Desse modo, os olhos se voltam
para os acontecimentos da Ásia, e exige um melhor conhecimento da indústria
automobilística daquele país que alcançou a condição de um dos maiores
produtores e exportadores de veículos do mundo.
Depois da estatização do Grupo
Kia, incluindo a Kia Motors e a Asia Motors, ocorrida há alguns meses, o mais
novo lance do setor é a aquisição da SSang Yong pela Daewoo, anunciada nas
últimas semanas. Será que a incorporação da menor montadora coreana pela
segunda maior indicaria um caminho a ser trilhado pelas demais empresas no
sentido de equacionar o problema enfrentado pela indústria automotiva daquele
pais? A saída seria a fusão entre as montadoras, configurando um novo quadro
com a retomada da capacidade de endividamento e, consequentemente, da
agressividade desta indústria nos mercados externos?
A SSang Yong Company é uma dessas
marcas que até poucos anos atrás eram completamente desconhecidas do público
brasileiro. O início das suas atividades, entretanto, remonta a década de 50,
com a montagem do seu primeiro carro de forma ainda artesanal, destacando-se no
cenário automobilístico mundial apenas recentemente.
A capacidade de produção anual da
SSang Yong é de 220 mil veículos esportivos e também de comerciais leves, mas
são os carros esporte o forte da sua atuação. Como a maioria dos montadores coreanos,
conta com acordos tecnológicos com empresas consagradas internacionalmente - no
caso a Mercedes Benz (2). Prejuízos acumulados desde 1992, totalizando uma
dívida de USS 2,5 bilhões, acabaram por inviabilizar a continuidade da
montadora.
A aquisição da Asia Motors pela
Daewoo, Hyundai ou pela Samsung já havia sido cogitada em meio à crise do Grupo
Kia, deflagrada há cerca de seis meses. A Samsung, apesar de ser um dos maiores
chaebols, inaugurou apenas em 97 sua
atuação no setor automobilístico. Com planos de exportação para o segundo semestre
de 98, a aquisição de uma empresa já em processo de produção poderia ser uma
estratégia de consolidação neste segmento.
Aliás, a constituição de fortes
grupos econômicos, com estrutura verticalizada, atuando nas áreas mais
diversas, desde finanças à mineração, passando pelo turismo e siderurgia, é a
base do modelo adotado na Coréia. A indústria automobilística passou a ser uma
das prioridades do governo coreano no inicio dos aos 60, com um programa de
proteção e subsídios. Trinta anos depois, três fabricantes coreanos produziam
mais de um milhão de carros e caminhões, dos quais um pouco mais da metade era
exportada. Hoje, as montadoras desse país, contando com um mercado interno de
apenas 1,2 milhão, produzem cerca de 2 milhões de carros de passageiros por
ano. A previsão anterior à crise era de que Coréia produziria seis milhões e
carros no ano 2000.
Para chegar a esse estágio, a
indústria automobilística coreana passou por diversas fases, sempre contando
com uma forte intervenção do governo. A política governamental garantia isenção
tarifária para as peças e componentes importados, redução de impostos e
proteção de mercado para as montadoras, via proibição de importação de carros totalmente
montados (3).
No final dos anos 60, o governo lançou
uma política agressiva de nacionalização da produção, cuja meta era aumentar
progressivamente o conteúdo local dos carros. A Hyundai foi a montadora mais bem
sucedida, atingindo 96% de nacionalização na produção de um modelo de carro de
passeio.
A Partir do final dos anos 70,
começou a haver uma ênfase nas exportações, racionalização da produção e
tentativas de dominar tecnologias mais complexas envolvidas na produção
integrada de automóveis. A ênfase nas exportações foi decorrente da crença
governamental de que a lucratividade no setor dependia de economias de escala e
que o mercado interno não seria capaz de atingir o tamanho necessário. A
racionalização da produção, dessa época, resultou de fato, na divisão do
mercado entre os principais produtores, ficando a Hyundai e a Daewoo com os
carros de passageiros e a Kia com os utilitários leves (mais tarde essa divisão
foi ultrapassada). O domínio das tecnologias seria perseguido através de licenciamentos,
acordos de cooperação e joint ventures
com empresas americanas, japonesas e europeias.
A última fase, iniciada em 1990,
caracterizou-se pela redescoberta do mercado interno, provocada por problemas
com protecionismo nos principais países consumidores, valorização da moeda
(won) e crescimento dos salários reais. Enquanto, em 1980, havia nove veículos
por 1000 habitantes, em 1990, essa marca atingiu 71,7 unidades, crescendo para 173,5
em 1995. Isso não quer dizer, porém, que a indústria automobilística coreana
tenha abandonado estratégias de internacionalização. Ainda nessa fase, as
empresas começam a investir em centros de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D),
visando obter capacidade de inovação própria. (3)
Agora, após o acordo com o FMI, as empresas
estão sendo instadas a resolver o problema do alto grau de endividamento,
realizar enxugamento de estruturas, reduzir custos, demitir em massa. O governo
obriga-se a abrir mais ainda o mercado à competição internacional e diminuir sua
ingerência, ou seja, não realizar inversões financeiras para socorrer os
conglomerados em dificuldades.
Com isso, haveria uma retração do
mercado interno, além de contar com pressão maior da concorrência das grandes
montadoras mundiais. A desvalorização do won, a moeda coreana, por outro lado,
pode contribuir para uma ofensiva exportadora indispensável para um pais que não
tem mercado suficiente para absorver toda a produção nacional, mas isto
exigiria maior capacidade de financiamento das exportações. A internacionalização
da produção, com a instalação de plantas no exterior, estaria subordinada a uma
estratégia de recuperação e fortalecimento do parque produtivo coreano.
Assim, a fusão entre empresas,
efetivamente, uma das alternativas na redefinição do modelo coreano, que viveu
uma rápida expansão econômica nas últimas décadas, contabilizou inúmeras
conquistas tecnológicas e vivencia um momento político peculiar, com a vitória
de uma oposição de perfil mais democrático que deverá implementar um acordo com
o FMI, cujo caráter é claramente recessivo e desfavorável ao desenvolvimento de
projetos nacionais autônomos.
(1) Na Coréia, o Grupo Daelim é
um chaebol autônomo, independente da
Kia ou Asia.
(2) SSang Yong website.
(3) Teixeira. F.L.C.; Vasconcelos,
N. Regime automotivo, maquiladores mexicanas e Indústria coreana: lições para a
Bahia.
*Professor da UCSal e doutorando
em Administração Pública no NPGA/UFBA.
Jornal A Tarde, Salvador, 15 de
janeiro de 1998
Jornal A Tarde
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