25 agosto, 2007

Sistema nacional de emprego na Bahia: funcionamento, resultados e limitações


Dissertação de Mestrado apresentada ao Núcleo de Pós-graduação em Administração da Escola de Administração da UFBA, em 2007
Autor(es): Barros, Cleyton Miranda
Orientador: Vasconcelos Júnior, Nilton

Resumo: 
Esta dissertação analisa o desempenho do Sistema Nacional de Emprego – SINE
 no Estado da Bahia, com enfoque na atividade de intermediação de mão-de-obra,
para o período de 2001 a 2005. A partir de uma pesquisa documental, analisou-se os resultados
apresentados por esta política pública de emprego, tendo como referência a dinâmica do mercado
formal de trabalho no estado. Para tanto, considerou-se diferentes dimensões da política de
intermediação, a exemplo do perfil dos trabalhadores atendidos, bem como da relação entre esses
e o universo de trabalhadores admitidos e desligados no período, segundo dados do Cadastro Geral
de Empregados e Desempregados – CAGED. Como resultado, constatamos uma correlação positiva
entre o desempenho do mercado formal de trabalho e o desempenho do SINE, através da relação
entre número dos trabalhadores colocados no mercado formal de trabalho através do serviço de
intermediação de mão-de-obra em relação ao número total de admissões. Além disso, verificamos
ainda que o desempenho do serviço público de intermediação de mão-de-obra é bastante heterogêneo,
com expressivas variações de acordo com o perfil dos trabalhadores.




Íntegra da dissertação aqui

 

02 fevereiro, 2007

Emprego estagnado no setor automotivo nacional

Nilton Vasconcelos
Publicado em Conjuntura & Planejamento, n. 140



Um fenômeno importante, já evidenciado em pesquisas
anteriores, vem se confirmando no setor automotivo
brasileiro. Na contramão da produção ascendente,
a estagnação do emprego é uma característica daquele
que é um dos segmentos tradicionalmente associados
à geração de postos de trabalho em larga escala.
Empregos sim, mas não como antes. Estabelecer
uma correlação direta entre elevação da produção e
ampliação do nível de emprego setorial está cada vez
mais difícil, e é uma situação ainda menos provável de
encontrar nas regiões produtoras mais antigas.
Na divulgação das estatísticas relativas à indústria
automotiva brasileira no ano de 2005, destacou-se
sobretudo a produção recorde de 2,44 milhões de veículos
montados no ano – o que inclui os automóveis,
comerciais leves, caminhões e ônibus. Pouca atenção,
entretanto, foi dedicada à análise do comportamento
do emprego no setor. Essa ênfase no número
de unidades produzidas não deixa de ser compreensível
visto que o desempenho da indústria automotiva
superou em dez por cento a produção também
recorde do ano anterior. São resultados indiscutivelmente
expressivos, em especial se comparados com
os índices de dez anos atrás. Verificou-se, em 2005,
um crescimento da ordem de cinqüenta por cento em
relação à produção observada em 1995, conforme
podemos observar na Tabela 1.
Aliás, o ano de 1995 é um marco na política pública para
o setor automotivo no país. Em junho daquele ano, o
governo Fernando Henrique Cardoso encerrou a experiência
da Câmara Setorial Automotiva, uma instância
de formulação de política setorial que envolvia uma representação
tripartite: o governo federal, empresários
e trabalhadores. Em seu lugar, foi editada uma série de
Medidas Provisórias que estabeleceram, de forma supostamente
unilateral, o Regime Automotivo Brasileiro.
Análises posteriores, inclusive do Tribunal de Contas da
União, mostraram que a mudança introduzida beneficiou
sobremaneira as montadoras em detrimento da indústria
nacional de autopeças, e deflagrou uma verdadeira
corrida fiscal, na qual os governos federal, estaduais e
municipais passaram a conceder cada vez mais benefícios
e vantagens para atrair investimentos automotivos
(VASCONCELOS, 2002).
O crescimento da produção, no entanto, não se deu
de forma linear, ao contrário, oscilou muito, tendo
chegado a dois milhões de unidades, em 1997, caído
para 1,3 milhão de veículos, em 1999, e retomado
uma curva ascendente a partir de 2002.
Entretanto, um outro indicador menos divulgado apresentou
um comportamento diferente ao longo da última
década. Trata-se do desempenho do emprego nas montadoras
de veículos, sendo observado nos anos recentes
uma relativa estagnação do contingente ocupado.

Quando o indicador é pessoal empregado, constatase
nos últimos onze anos uma diminuição de dez mil
vagas nas montadoras, caindo de 104 mil para 94 mil,
em 2005, ainda que neste ano tenha sido anotado um
crescimento de 6% no número de postos de trabalho
nos fabricantes de autoveículos. Desde o final da década
passada, no entanto, prevalece um quadro de
estagnação do nível de contratação, mantendo-se na
faixa dos 85-90 mil contratos de trabalho nas montadoras,
como se pode ver na tabela acima.
Uma análise mais extensa da série histórica produzida
pela ANFAVEA – Associação Nacional dos Fabricantes
de Veículos Automotores do Brasil indica que o
ano de 1980 marcou o recorde do emprego com 133
mil postos de trabalho nas montadoras, para um total
de 1,165 milhão de veículos produzidos naquele mesmo
ano. Assim, a relação veículos produzidos/empregados
nas montadoras/ano variou de 8,7 veículos por
empregado, em 1980, para aproximadamente 25,9
veículos por empregado, em 2005. Há, portanto, um
crescimento significativo da produtividade, levando
em conta esse indicador.
A essa redução do emprego ao longo do período e
à relativa estagnação observada nos últimos anos,
correspondeu um crescimento da sub-contratação,
da terceirização, do emprego por tempo parcial e de
outras modalidades de precarização do emprego.
Correspondeu, ainda, à utilização de métodos de gestão
que privilegiaram a redução de custos – inclusive
dos custos do trabalho – e modificaram a estrutura da
produção automotiva, transferindo grandes parcelas
da montagem para empresas integrantes de outros
níveis da cadeia produtiva.
Segundo a OIT – Organização Internacional do Trabalho,
em relatório publicado em 2005 sobre as tendências
da indústria automotiva, os fornecedores de
componentes de automóveis já respondem por dois
terços do valor adicionado de um veículo, e, em futuro
próximo, esta relação pode chegar a 75%, no caso de
alguns fabricantes.
Essa transferência de fases da produção das montadoras
para os fornecedores poderia significar que o
emprego também teria sido deslocado para os fabricantes
de autopeças, o que, entretanto, não ocorreu.
Segundo dados do Sindipeças – Sindicato Nacional
da Indústria de Componentes para Veículos Automotores,
que reúne as empresas produtoras de autopeças,
o setor empregava em 1994 um total de 236,6
mil trabalhadores, tendo este número recuado para
187 mil, em 2004, com uma estimativa de chegar a
um total aproximado de 197 mil empregados no mês
de novembro de 2005. Em síntese, verifica-se um
quadro semelhante àquele observado nas montadoras
de veículos.
Com relação ao faturamento na indústria de autopeças,
a tabela abaixo apresenta um caminho inverso
daquele percorrido pelos índices de emprego. Embora
com oscilações, há um crescimento do faturamento
em dólar, de forma que o indicador faturamento por
trabalhador/ano apresenta elevação substancial. Trata-
se, portanto, de uma variação equivalente à que foi
observada entre o número de unidades produzidas
por trabalhador nas montadoras.


Outro fator relevante, e que mostra o quanto é significativa
a variação do emprego nos centros tradicionais
da produção automotiva no Brasil, é o investimento realizado
em novas unidades produtivas no país a partir
do final dos anos noventa. Foram mais de dez novas
fábricas construídas no país, entre as quais estão
grandes plantas industriais no Rio Grande do Sul, Paraná,
Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais, todas elas
situadas fora das regiões historicamente produtoras
de veículos. Estima-se que apenas a Ford, em Camaçari,
empregue em torno de 4 mil trabalhadores, sem
contar as demais empresas integrantes do condomínio
industrial comandado pela empresa estadunidense.
As novas unidades produtivas da General Motors,
Renault, Peugeot e outras, também contribuíram para
o surgimento de milhares de postos de trabalho. Portanto,
para se obter os números finais que indicam
a relativa estagnação do contingente empregado no
setor nos últimos anos, deduz-se que a redução do
emprego foi ainda mais dramática nos centros produtores
tradicionais de autoveículos, como São Paulo.
No panorama mundial, a indústria automotiva tem
sido marcada pelo insistente noticiário da imprensa
especializada sobre uma iminente falência das duas
gigantes norte-americanas – a Ford e a General Motors,
que reúnem uma dívida de mais de 450 bilhões
de dólares e têm valor de mercado estimado em torno
de 35 bilhões de dólares. Os sistemáticos ajustes de
custos, com a demissão de dezenas de milhares de
empregados, atinge também a outrora terceira maior
empresa automobilística dos EUA.
Sejam quais forem as dimensões da crise das gigantes
do setor, o impacto sobre o Brasil se fará sentir, ou
seja, não há motivo para se crer que a reestruturação
tenha chegado ao fim e que suas implicações sobre
o emprego deixem de ser detectadas. Ao contrário, o
estímulo à incessante diminuição de custos de produção
contribui para a restrição desta esfera em benefício
da financeirização da economia. Nesse contexto,
o emprego tende a reduzir em termos proporcionais,
não apenas na indústria, mas também nos demais setores,
à medida que assimilam a lógica predominante
na economia.


Referências
ANFAVEA. Anuário estatístico da indústria automobilística
brasileira – 2005. Disponível em: com.br>. Acesso em: 30 de janeiro de 2006>.
SINDIPEÇAS. Informativo, dezembro 2005. Disponível
em: asp>. Acesso em: 30 de janeiro de 2006.
______. ABIPEÇAS. Desempenho do setor de autopeças
2005. Disponível em: br/documentos/desempenho2005.pdf/>. Acesso em:
27 de janeiro de 2006.
TEIXEIRA, F. L. C.; VASCONCELOS, N. Reestruturação
produtiva, organização do trabalho e emprego na
cadeia automobilística brasileira. Nexos Econômicos,
Salvador-Ba, v. II, n. 1, p. 115-128, 2000.
VASCONCELOS, N. A política pública e o seu processo
de formulação: o caso da indústria automotiva
brasileira na década de 90. Bahia Análise & Dados.
Salvador, v. 12, n. 2, p. 125-137, set. 2002.

* Professor do CEFET-BA, Doutor em Administração Pública.




O texto completo está no site da SEI - Superintendência de EStudos Econômicos e Sociais da Bahia

Economia Solidária e Metodologias de Incubação



Débora Nunes UNIFACS/UNEB
Nilton Vasconcelos CEFET-BA


Introdução

A pesquisa e a extensão universitárias relacionadas ao desenvolvimento da gestão de empreendimentos solidários tem se ampliado em todo o país, especialmente a partir de 2003, com a criação da Secretaria Nacional de Economia Solidária SENAES/MTE, elevando a um novo patamar os desafios no apoio e fomento às cooperativas populares, aos grupos de produtores de bens e serviços, associações e entidades que lhes prestam assessoria. Medidas adotadas nos três níveis de governo permitiram o fortalecimento das atividades de geração de ocupação e renda numa perspectiva associativista, participativa, auto-gestionária e de harmonização entre o consumo e a produção de bens e serviços.

Em decorrência deste crescimento, importantes exigências têm sido apresentadas às instituições de apoio, notadamente as universidades, no sentido de aprimorar as metodologias de incubação. Esta temática tem sido objeto de um debate permanente no âmbito das organizações financiadas pelo PRONINC – Programa de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas, que reconhece a necessidade de reavaliar os procedimentos de intervenção direta no suporte ao associativismo econômico para aperfeiçoar a assessoria prestada.

O universo da Economia Solidária (ES) é bastante amplo. O sentido geral destas iniciativas é estabelecer relações econômicas com base na solidariedade, em métodos participativos de deliberação e gestão, e em princípios éticos de consumo, incluindo a defesa do meio ambiente (NUNES, 2002). São atividades econômicas intensivas em trabalho e que, muitas vezes, não dispõem dos recursos iniciais necessários à aquisição de equipamentos, insumos ou ao custeio. Para reforçar sua autonomia e desenvolver-se economicamente, buscam organizar-se em redes, de produção e consumo, mas também políticas, visando obter apoio do Estado e maior inserção na sociedade.

Este texto pretende descrever em grandes linhas o processo de incubação de empreendimentos populares de Economia Solidária que vem sendo realizado em algumas Universidades, assim como apontar alguns dos desafios deste processo, particularmente a discussão sobre a sustentabilidade associativa dos empreendimentos. Para auxiliar estas organizações é indispensável que se desenvolva uma melhor compreensão sobre elas, inclusive quanto às soluções encontradas pelos próprios empreendimentos no enfrentamento da realidade que integram, observando a lógica específica do seu funcionamento e identificando os mecanismos que lhes têm permitido resistir em meio a um ambiente competitivo altamente desfavorável à sua sobrevivência.


O processo de incubação de empreendimentos populares de Economia Solidária

Para melhor incentivar o surgimento de organizações econômicas populares e contribuir para seu desenvolvimento surgiram centenas de iniciativas de incubação no Brasil, desde os anos 70, destacando-se o caso pioneiro da Cáritas Brasileira (BERTUCCI e SILVA, 2003). No ambiente universitário, o fomento aos empreendimentos solidários, particularmente às Cooperativas Populares, surge com maior evidência no Brasil a partir dos anos 90. Assim, o conceito é construído a partir da prática e a prática é realimentada pelas análises teóricas (GUIMARÃES, 2002). A experiência das incubadoras tecnológicas de cooperativas populares tem início nos anos 1995-1996, e deu margem à estruturação da primeira Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares - ITCP, em 1995, na COPPE/UFRJ, centro de pós-graduação em engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O reconhecimento deste trabalho estimulou o lançamento do PRONINC, em 1998, possibilitando o surgimento de outras cinco incubadoras. Em 1999, estrutura-se a Rede Nacional de Incubadoras atuando com a perspectiva de resgatar o papel da universidade como agente transformador da sociedade na concepção de extensão universitária (SOUZA SANTOS, 2002; SINGER, 2002).
Em fins de 2003, o Ministério do Trabalho, através da Secretaria Nacional de Economia Solidária, em parceria com a FINEP/MCT, Fundação Banco do Brasil, entre outras, relança o PRONINC, resultando no apoio financeiro à implantação ou manutenção de 35 projetos de incubação em diversos centros universitários. A partir deste universo pode-se ter uma aproximação de como se dá os processos de incubação no Brasil, salientando-se, entretanto, que, se as variantes são grandes no universo da incubação feita pelas universidades, maiores ainda elas se apresentam quando examinamos outros tipos de incubadores (ONGs, igrejas, poder público, etc).

A particularidade da incubação de empreendimentos solidários em relação a outras organizações empresariais, mesmo as de pequeno porte, consiste no perfil dos integrantes dos grupos, que reúnem, em geral, apresentam características que, face aos paradigmas de mercado, os desqualificariam para levarem adiante um “negócio”. São, em geral, pessoas pobres, sem os recursos indispensáveis para investimentos, sem experiência de gestão, com baixa formação escolar, e dificuldades inerentes à condição social e econômica em que vivem.

Assim, os trabalhos de incubação buscam ultrapassar as barreiras da linguagem escrita e falada, da formação para o associativismo e o cooperativismo, do processo decisório em grupo, até alcançar os temas vinculados ao negócio propriamente dito - como obter os recursos para investir, o que produzir, para quem vender, por quanto comercializar, como distribuir os ganhos, etc. Para tanto é indispensável encontrar os valores inerentes ao grupo, os aspectos positivos que caracterizam sua força, sua capacidade de reagir às circunstâncias hostis.

Como o processo de incubação prevê um acompanhamento aproximado entre os técnicos envolvidos na incubação e os membros dos empreendimentos, e destes entre si, é importante tentar empreender uma abordagem antropológica do processo de incubação, enquanto processo grupal. Em primeiro lugar, entender em profundidade os efeitos que a vivência da pobreza acarreta às habilidades necessárias para empreender de forma solidária, tanto em termos positivos quanto negativos. Numa segunda dimensão, atentar para as particularidades da relação entre incubadores e incubados, marcada por diferenças sociais, econômicas e culturais importantes.
Por outro lado, o apoio a empreendimentos de Economia Solidária requer o aprofundamento do conhecimento sobre as peculiaridades da sua gestão. Neste contexto é que se objetiva ampliar a compreensão sobre o fenômeno do cooperativismo popular, em especial sobre o seu processo de incubação. Parte-se do pressuposto, contudo, que se deve apreender com os próprios empreendedores, reconhecendo a existência de um saber específico que precisa ser levado em conta, diferentemente de uma perspectiva escolástica, de transferência de conhecimento desde a Universidade para aqueles que não detém conhecimento algum. Ao contrário, considera-se que os conhecimentos reproduzidos na academia para os empreendimentos econômicos tradicionais não se aplicam automaticamente para os integrantes das cooperativas populares e que é preciso desenvolver saberes e metodologias diferenciadas.

Metodologias de incubação nas Universidades

Uma análise comparativa das metodologias de incubação (BARRETO, 2004) desenvolvidas por diversas incubadoras tecnológicas universitárias, num total de onze incubadoras de cooperativas populares (UFPA, UFC, UFRN, UFRPE, UNEB, UFJF, UFRJ, UNICAMP, USP, UFSCAR e UFPR) permitiu estabelecer três grandes etapas, ainda que exista uma tênue linha divisória entre cada uma destas fases, a saber: 1) a pré-incubação, 2) a incubação propriamente dita e 3) a desincubação. As atividades desenvolvidas em cada uma destas etapas foram sistematizadas a partir da análise de documentos disponibilizados pelas incubadoras, não correspondendo, entretanto, a uma visão homogênea. Observa-se que as ITCPs adotam um número variável de práticas ou ações nas diversas etapas. Esta diferença do nível de amadurecimento, da infra-estrutura disponível pela própria incubadora, ou da interpretação do conteúdo das atividades descritas.

O quadro resultante do esforço de sistematização de metodologias, ainda que apresente insuficiências, revela um tratamento de per si aos empreendimentos, um de cada vez, ou um projeto de incubação elaborado a partir de demandas específicas. Assim, a elaboração de um plano de negócio, da análise de viabilidade econômica, da prospecção de atividades econômicas ou de capacitação dos cooperados, decorre das necessidades de cada grupo.

Embora os passos identificados no levantamento sejam largamente utilizados, e as três etapas de incubação sejam uma referência em quase todos os processos, é necessário um detalhamento maior do que efetivamente é feito no processo de incubação, para não simplificarmos demais e discutirmos apenas nos seus aspectos técnicos e gerenciais. Definidos os passos gerais que normalmente são dados nos processos de incubação universitária – mas também na maior parte das instituições deste tipo de outras origens - é importante observar quais são seus maiores desafios, tanto do ponto de vista da sustentabilidade econômica, quanto associativa.

Os desafios dos empreendimentos solidários em termos de sustentabilidade econômica

Esta abordagem, de modo geral, é a mais discutida quando se fala de incubação de empreendimentos de Economia Solidária. Talvez pela abundância de literatura e pela interveniência de instituições que têm ampla experiência neste campo no caso das pequenas empresas (Ex: SEBRAE), a abordagem da gestão econômica é a mais corrente. É preciso destacar, dentre outros, o esforço da CAPINA, Ong com sede no Rio de Janeiro que vem desenvolvendo há muitos anos uma abordagem de assessoria que enfrenta os desafios econômicos e associativos ao mesmo tempo (CAPINA, 1998). Abordaremos brevemente este tema para passarmos em seguida para um desenvolvimento mais longo das questões da incubação enquanto processo de troca cultural e construção de valores.
Em termos de sustentabilidade econômica, de um modo geral as cooperativas populares enfrentam as dificuldades inerentes aos pequenos empreendimentos, numa estrutura de economia de mercado absolutamente adversa, aliado aos problemas relativos ao perfil dos empreendedores e à natureza coletiva na iniciativa. Veiga (2002) identifica seis dificuldades que o associativismo econômico enfrenta:

- A idéia do emprego tradicional como horizonte de ocupação a ser atingido pelos empreendedores, tendo como objetivo a segurança do vínculo e as garantias trabalhistas, e adotando o associativismo econômico como último recurso;
- Falta de uma compreensão dos agentes públicos, entidades de apoio e sindicatos quanto à forma de tratar os novos trabalhadores não-qualificados e semi-qualificados integrantes do associativismo econômico;
- Defasagem dos critérios adotados para financiamento destas novas iniciativas, ainda baseadas em garantia patrimonial, lucratividade, cadastro no sistema financeiro - que não são adequados à realidade dos empreendimentos populares;
- Fragmentação das experiências, levando ao desperdício de oportunidades por falta de troca de informações ou ações conjuntas;
- Falta de acompanhamento duradouro das iniciativas por parte dos órgãos de apoio e financiamento;
- Falta de uma política pública, especialmente no âmbito municipal, limitando o desenvolvimento do associativismo econômico.

Embora este quadro ainda seja predominante, ele vem se modificando com a ampliação do número de empreendimentos solidários e dos recursos a eles destinados diretamente ou através de organizações de apoio, por agências públicas e privadas. As referências à problemática da sustentabilidade econômica, entretanto, tem apenas a finalidade de compor o quadro mais amplo dos desafios da incubação dos empreendimentos solidários. Não as aprofundaremos aqui. O objetivo principal deste artigo é abordar prioritariamente o que chamamos de sustentabilidade associativa, assunto da próxima seção.

Os desafios dos empreendimentos solidários em termos de sustentabilidade associativa

A incubação, que dificilmente existe por menos de dois anos e significa um trabalho aproximado dos incubadores (diário ou semanal, na maior parte dos casos) com os membros do empreendimento, significa essencialmente uma troca cultural, no sentido de que envolve aprendizado técnico e gerencial, mas também, um relacionamento em que estão em jogo valores, comportamentos, vivência de momentos chaves, num processo que vai da dependência à autonomia. A seguir levantaremos vários pontos que pretendem caracterizar melhor o processo de incubação tal como o vemos, de forma a contribuir para que o debate sobre a incubação avance. Estes temas referem-se ao contexto da pobreza de onde se originam a maior parte dos empreendimentos de ES; aos atores que constroem o desenvolvimento dos empreendimentos solidários e as questões inerentes ao processo de incubação, onde comunidades pobres são apoiadas por profissionais oriundos de segmentos sociais mais privilegiados.

I - Contexto de pobreza de onde se originam a maior parte dos empreendimentos de ES

1) Estigmatização da pobreza e interiorização do estigma

Nunes (2002) inicia a discussão sobre a estigmatização e sua interiorização citando Goffman (1975), que relembra que a palavra estigma tem uma origem grega e se referia, na antiguidade, a um sinal corporal particular, através do qual se queria deixar evidente algo de mal ou de extraordinário sobre o estatuto moral de alguém. O termo será utilizado no sentido atual mais corrente, para se referir à identificação condenatória a priori de uma pessoa ou de um grupo. Dizer que os pobres são estigmatizados na sociedade capitalista não é uma novidade, vários autores já o fizeram antes. Mas se os pobres são estigmatizados, do que são eles acusados? Exatamente de serem pobres, e ainda, de serem potencialmente perigosos. A ideologia difundida por muito tempo em nossa sociedade — apesar da resistência a tal noção ao longo da história e de mudança recente na abordagem do problema — é de que os pobres são pobres por sua própria culpa, por sua ignorância, por sua incapacidade, por sua falta de esforço para progredir ou mesmo pela cor de sua pele.

O problema social da pobreza foi pouco reconhecido por muito tempo no Brasil e até muito recentemente era considerado como de responsabilidade individual. Esta concepção tem a ver com o passado escravista do país, com a inexistência de uma consciência verdadeiramente republicana, com idéias religiosas - que fazem aceitar a pobreza como um sofrimento que será recompensado no além - assim como pelo estado patrimonialista que cria e mantém na dependência da boa vontade dos ricos e poderosos, políticos, administradores, “coronéis”, etc., os desprovidos (FAORO, 1987). A sociedade brasileira só há muito pouco tempo está construindo um serviço público funcional que está fazendo com que a pobreza seja vista como um problema de sociedade a ser tratado estruturalmente pelas instituições responsáveis.

A estigmatização começa pelo visual. Os pobres são segregados pela cor da pele, pela forma de se vestir, pelos sinais corporais que evidenciam seu acesso precário à saúde. Outros sinais podem ser perceptíveis, primeiramente, o lugar onde as pessoas se encontram, pois as cidades são segregadas e os pobres não estão presentes em todos os seus espaços. Em seguida, o modo de falar, as falhas nas concordâncias verbais e nominais e o desconhecimento de tecnologias mais comuns na vida dos incluídos, como a internet, os caixas eletrônicos, etc. Numa outra abordagem, a estigmatização é também uma relação social e por isto se observa de maneira ostensiva o desejo da elite de não se confundir com os pobres e de utilizar vários artifícios para mostrar riqueza e consolidar a diferença de classe.

A interiorização do estigma é uma das reações dos pobres à sua estigmatização. Esta parece ser a atitude mais largamente difundida e que se poderia classificar como uma reação conformista ao modelo social. Mas não é só, há também uma reação mais crítica. Pode-se observar, em outra direção, uma consciência de que se é posto à margem da sociedade, e esta pode desencadear reações de resistência, como a luta política (CHAUI, 1986) – numa perspectiva vista como positiva, ou de revolta, como a marginalidade (ZALUAR, 1985). Todas essas reações, entretanto, não são excludentes, podendo haver nuances no comportamento dos pobres face à estigmatização.

Entre as conseqüências da interiorização do estigma estão a auto-imagem negativa pessoal e do grupo, a identificação com os poderosos, o apoio a líderes fortes, e a inexperiência em ações coletivas (NUNES, 2002). Todas estas conseqüências são extremamente nefastas à construção de um empreendimento econômico popular de fato auto-gestionário e autônomo. A interiorização do estigma da pobreza faz com que as pessoas esperem dos seus líderes que eles sejam diferentes deles próprios, mais próximas ao modelo “bem sucedido” da sociedade. Esta também pode ser a atitude face aos incubadores, que algumas vezes são instados a tomar atitudes de direção no empreendimento, ao invés de serem um apoio lateral (trataremos deste tema mais à frente). As entidades responsáveis pela incubação de empreendimentos devem estar duplamente atentas quanto a esta questão: a expectativa do grupo incubado face à incubadora e do conjunto dos incubados/cooperados em relação aos seus líderes.
Para uma organização que deve ter na auto-gestão um de seus pilares fundamentais, não enfrentar as conseqüências da interiorização do estigma da pobreza pode ser um fator altamente desagregador, especialmente pelo papel que podem desempenhar as lideranças dos empreendimentos. Na auto-gestão, por definição, a igualdade entre os membros deve ser a base de todas as decisões onde cada pessoa vale um voto. Luta-se para que todos apreendam o que está em jogo em cada decisão, há grande esforço para o empoderamento de cada membro e para um nivelamento da participação. Entretanto, nem nos empreendimentos mais bem sucedidos em termos dos critérios autogestionários, existe igualdade completa entre os membros, e nem poderia haver. A igualdade legal – todos votam, todos podem votar e serem votados, todos têm iguais responsabilidades e direitos conforme o Estatuto - não impede que a força simbólica da presença de alguns os diferencie dos demais. Se este fato se conjuga com a auto-imagem negativa pessoal e grupal, com a identificação com os poderosos e com o desejo de apoio a líderes fortes por parte de alguns dos membros do empreendimento, o processo auto-gestionário pode estar posto em cheque.

2) Rotatividade e intermitência

Uma outra conseqüência do contexto de pobreza de onde se origina a maior parte dos empreendimentos de Economia Solidária é a rotatividade e intermitência existente entre os membros dos empreendimentos. Chamamos de rotatividade ao processo de mudança continuada do quadro de membros de um empreendimento pela entrada e saída de empreendedores, que depois de certo tempo, encontram novos caminhos e afastam-se. A intermitência é o processo de saída e retorno de membros, muitas vezes desiludidos com o outro caminho escolhido, ou que simplesmente retornam ao empreendimento depois de um trabalho temporário.
Foi identificado, na pesquisa que mapeou em escala nacional os empreendimentos de Economia Solidária, coordenado pelo MTE (SINAES, 2005), que o maior motivo de entrada das pessoas nos empreendimentos de ES é o desemprego. Como estes empreendimentos têm grandes obstáculos ao seu desenvolvimento e demoram muito (considerada a escassez de renda dos empreendedores) a dar resultados que permitam a sobrevivência, outras oportunidades de trabalho aparecem, sejam atividades de curto prazo, seja um emprego relativamente estável. Como a atração pelo emprego tradicional, como foi assinalado anteriormente por Veiga (2002), é ainda a perspectiva mais desejada pelos trabalhadores, os empreendimentos de ES sofrem com os efeitos deste processo.

A rotatividade e a intermitência fazem com que as etapas de incubação citadas (pré-incubação, incubação e desincubação) sejam de fato sucessivas para todos os membros. Para os novos, ou para os que saíram e retornaram, sempre há um descompasso em relação aos que estiveram presentes desde o primeiro momento da experiência de empreendimento econômico associativo, seja em termos de formação técnica, de gestão associada, ou mesmo em termos culturais, ou seja, de comportamento face aos valores da Economia Solidária. Desta forma, é importante que os incubadores levem em consideração esta descontinuidade natural no processo e estejam preparados para uma atuação concomitante das etapas do processo de incubação.

II - Os atores que constroem o desenvolvimento dos empreendimentos solidários

1) As relações de trabalho nos empreendimentos de ES: o desafio da superação da hierarquia

Os trabalhadores de uma empresa capitalista sabem que a finalidade última do empreendimento é o lucro e que as relações de hierarquia são um dos meios de garantia deste resultado, às quais devem se submeter. Nos empreendimentos de Economia Solidária a finalidade última é melhoria da qualidade de vida dos seus membros, da comunidade em que estão inseridos e das redes das quais participa – o que pode ter um alcance planetário – tudo isto na base do “um membro, um voto”, ou seja, de forma auto-gerida.

Diante desta lógica de funcionamento e objetivos tão diferentes daquelas da economia de mercado, faltam regramentos testados por uma longa prática autogestionária, como foi a hierarquia para o capitalismo. Para que os empreendimentos de Economia Solidária sejam geridos de forma coletiva, espera-se que as regras da conduta e o esclarecimento do papel de cada um de seus membros devam ser decididos coletivamente. Nesta lógica, qualquer conflito deve ser decidido democraticamente, em votações presenciais ou de representantes, a depender do tamanho do empreendimento, e isto é complicado, conflituoso e demorado.
Os regramentos internos do ambiente de trabalho complicam-se ainda mais na experiência da Economia Solidária pelo fato de que, buscando superar a supremacia do trabalho intelectual sobre o trabalho manual e a aquisição de prestígio para alguns membros, derivada das suas funções, busca-se uma rotatividade de atividades. O desafio é que todos entendam inteiramente o processo produtivo, da matéria prima ao atendimento ao cliente, e conheçam todos os aspectos do gerenciamento do negócio, do investimento aos resultados.

Deste modo, as especializações segundo talento de cada um são muitas vezes mal vistas e torna-se difícil definir o papel de cada um e o alcance e limites de suas responsabilidades. O que observamos é que nos ambientes de ES, particularmente nos empreendimentos jovens, em processo de incubação, as relações se complicam por não haver um amplo entendimento sobre o que fazer a cada caso, à semelhança do quadro lógico da hierarquia. Muitas vezes cada membro do empreendimento espera que o outro aja e isto paralisa o grupo, outras vezes é a precipitação de um dos membros em decidir e fazer que complica as coisas. Este problema se apresenta pouco numa empresa capitalista, pois, pelos regulamentos hierárquicos existentes, é mais visível o papel de cada um em cada situação.

Na verdade, a falta do quadro lógico e conhecido da hierarquia faz com que a resolução de problemas de produção, de consumo, de comercialização, de controle de tarefas, etc. que não podem esperar até a próxima reunião do grupo ou dos seus representantes para ser resolvida democraticamente possam se tornar um problema. Enfrentar de forma criativa e participativa este problema é mais um desafio de empreendedores e incubadores.

2) As relações inter-pessoais

O tema das relações inter-pessoais nos empreendimentos de Economia Solidária é crucial para seu desenvolvimento e sucesso e por isto deve ser tratado com cuidado, dentro da especificidade da realidade de cada um deles. A aceitação do outro, o respeito e a compreensão nos momentos delicados, o cuidado com as emoções, precisam tornar-se prática. Do mesmo modo que se dedica tanto esforço à formação de tarefas que podem ser consideradas “instrumentais”, como o plano de negócio, os controles de caixa, o planejamento estratégico, etc. é preciso estar atentos à resolução dos conflitos e encontrar saídas que não sejam, a cada situação conflituosa, o afastamento de um membro. A superação desta fragilização continuada dos empreendimentos causada pelo desconforto nas relações inter-pessoais, ou pelo afastamento de membros, necessita ser tratada com metodologia apropriada.

Nas reuniões, geralmente feitas nos fins de semana ou à noite, após jornadas de trabalho exaustivas, nem sempre é fácil discutir os problemas de relacionamento no grupo. As pressões do cotidiano produtivo do empreendimento, que ocupam muito tempo em diagnósticos, análises e decisões e um certo constrangimento das pessoas em iniciar conversas francas onde naturalmente alguém acaba se magoando, vai deixando crescer mal-entendidos, que acabam por provocar afastamentos. Quando o grupo empreendedor supera as dificuldades dos primeiros tempos e consolida a confiança, estes transtornos nas relações pessoais tendem a diminuir, mas esta é uma conquista difícil, que, entretanto, merece ser empreendida.

Avançando um pouco mais no entendimento dos conflitos, percebe-se que nem sempre é possível resolvê-los pela discussão, e ainda menos na discussão coletiva, onde se observa uma tendência ao agravamento das tensões. De modo geral é preciso tempo e preciso também um intermediário legitimado pelo grupo, que ajude na busca de uma solução negociada. A lógica da vitória da maioria, tão propalada na democracia, significa muitas vezes a desconsideração aos que estão em minoria e isto vai minando aos poucos o ambiente. Provavelmente será necessário superar a lógica da maioria e tentar sempre buscar o consenso. Os incubadores precisam tentar ser este intermediário legitimado e ao mesmo tempo criar uma cultura de resolução de conflitos pela negociação, onde a cada conflito se identifique um intermediário legitimado diferente, entre os próprios membros dos empreendimentos.

3) Os desvios de conduta nos ambientes de Economia Solidária: como tratá-los?

Dentro dos empreendimentos de Economia Solidária (e também nas incubadoras, nas redes, nos fóruns, nas entidades financiadoras...) espera-se que os valores e as práticas de justiça, de cooperação, de democracia cotidiana estejam presentes num grau muito mais alto do que na sociedade em geral. Ao pensarmos que os membros de um empreendimento de ES, de modo geral, optaram por um funcionamento diferenciado do que comumente se vê no mundo capitalista – desigualdade, hierarquia, competição, para não falar na exploração pura e simples do homem pelo homem – espera-se muito do comportamento ético destes membros. A prática demonstra, entretanto, que as coisas não são tão simples.

Naturalmente a ES é uma construção e os valores que a orientam e justificam a sua própria existência devem ser buscados cotidianamente. Neste texto, entretanto, a abordagem desta questão pretende suscitar o debate em torno do perfil ideológico das pessoas que integram os empreendimentos. Ocorre que a motivação para a constituição destes empreendimentos populares está relacionada às condições materiais daqueles que os integra, ou seja, a necessidade de obtenção de renda e a falta de opções para tentar alcançar este objetivo, o que fica evidenciado no mapeamento da ES, já citado. Mesmo quando há uma motivação ideológica em torno dos valores da ES no surgimento de um empreendimento, outros membros são incorporados no caminho e nem sempre estes têm a mesma intensidade no seu compromisso com estes valores. Outras vezes, existe tanto a motivação ideológica quanto o engajamento, mas estes não resistem às pressões externas de uma sociedade que promete muito àqueles que têm mais que os demais. O mais comum é que haja uma certa fragilidade na vivência dos princípios (mesmo que não nos discursos) e isto pode acarretar o surgimento de desvios de conduta.

As falhas éticas ou desvios de conduta possíveis são muitos: o autoritarismo, a mentira, os comportamentos anti-sociais com os companheiros e mesmo a desonestidade para com o patrimônio coletivo. Este último desvio de conduta tem um significado particularmente grave já que mesmo na sociedade capitalista ele é tipificado como crime; deste modo, uma organização social da produção que se pretende moralmente superior, como a Economia Solidária, tem dificuldades ainda maiores de lidar com o roubo. Em segundo lugar porque, tratando-se de um patrimônio coletivo muitas vezes ligado à sobrevivência cotidiana dos membros do empreendimento, a subtração de parte deste patrimônio por um membro prejudica a qualidade de vida imediata de cada um, o que parece ser imperdoável. Entretanto, é importante pensar um pouco mais neste tema.
Diante de uma falha ética, em primeiro lugar, é imprescindível perguntar sobre a gravidade do fato em termos de montante, das circunstâncias particulares em que isto aconteceu e de quem é a pessoa que cometeu este ato. Tratar um membro de um empreendimento de Economia Solidária que cometeu algum tipo de desvio de conduta, mesmo um furto, com tolerância não seria uma condescendência, mas um dever do coletivo. Apostar na Economia Solidária é apostar nas pessoas, nas suas potencialidades, na sua capacidade de mudar pra melhor, pois é uma aposta num futuro mais justo, num mundo melhor. Sendo assim, a conduta implacável, não dá chance para a mudança, não condiz com a concepção do papel formador, pedagógico, dos ambientes de Economia Solidária.

Dar amplo direito de defesa, aplicar penas conforme o delito praticado - em circunstâncias mais ou menos graves – observar a questão importante da reincidência, é um dever para com o futuro de justiça que se diz querer construir deste já. Há uma outra abordagem que precisa ser incorporada quando um empreendimento vive uma situação como esta: a possível co-responsabilidade do coletivo para com os fatos. Quando não há no empreendimento um sistema de controles firme e uma exposição gradativa e controlada dos membros a atividades que exigem muita confiabilidade, como lidar com recursos, pode-se especular, em face a erros individuais, que houve falha coletiva no controle e na atribuição de confiança.

Para finalizar a abordagem deste aspecto, uma breve reflexão sobre o perigo de a tolerância se tornar perspectiva de impunidade. A tolerância, tão prenhe de confiança no outro, tão generosa na sua aposta no convívio humano, tão nobre no seu otimismo, pode também se configurar em ingenuidade, abrindo as portas para a injustiça. Um erro não punido devidamente pode estimular um erro mais grave, se aquele que errou não entender a dimensão educativa da tolerância e a expectativa que o coletivo tem no seu retorno a uma conduta correta. Como o enfrentamento de um problema como o desvio de conduta é sempre exemplar para o coletivo, uma condução mal feita do desfecho deste problema pode ser ruim pra a história do empreendimento. A opção pela tolerância não pode significar a impunidade, pois a crença na justiça coletiva pode assim ser abalada e desta forma outros desvios estarão nascendo: naquele que a praticou primeiro e em outros que seguirão seu exemplo, confiando que não serão punidos. Há que se ser tolerante, mas não ingênuo, e vigilante, pra que o erro não se repita.

III ) Particularidades do processo de incubação de empreendimentos auto-gestionários

A incubação pretende ajudar o empreendimento de Economia Solidária a se estabelecer em termos de auto-gestão e de viabilidade econômica, assim como apoiá-lo na sua inserção em redes, tanto produtivas, quanto políticas. Neste trabalho cotidiano de incubação, busca-se todo o tempo não chegar aos extremos da “tutela”, onde a incubação tende a ser muito presente e voluntarista, ou do “abandono”, quando a incubação é mais ausente, espera acontecer, sem interferir no ritmo natural dos fatos. Para manter um trabalho de incubação na justa medida, é preciso haver uma definição metodológica clara.

Quando se inicia o trabalho de acompanhamento, é natural maior interferência da assessoria, e quanto mais se aproxima da fase de desincubação, a tendência é um maior afastamento. Entretanto, estas atitudes tendem a se apresentar para além do momento em que elas seriam mais pertinentes e atravessam todo o processo de incubação, convertendo-se de certa forma em um problema a ser discutido. A seguir, faremos um perfil de cada uma das posturas de forma bastante maniqueísta, ou seja, realçando suas características extremas em termos dos benefícios e prejuízos que causam, para que se possa compreender com mais clareza o problema.

Ao acompanhar um empreendimento a assessoria é chamada a apoiar suas atividades sem, teoricamente, substituir a ação dos empreendedores. Para alguns, mais “maternais” ou mais voluntaristas, a responsabilidade para com o empreendimento transforma-se em substituição – executam as tarefas que deveriam ser realizadas pelo grupo, ou assumem a direção para mobilizar o grupo para que este as faça acontecer. Agindo desta forma, crêem estar protegendo o grupo do insucesso. Isto é necessário em algumas situações - como foi dito, particularmente nos momentos iniciais da incubação - mais se permanece longo tempo, é prejudicial ao grupo, que não se emancipa, não se torna autônomo. O que é longo tempo? Cada caso é um caso. Mas, por exemplo, se um grupo de empreendedores não dirige suas próprias reuniões, não relata suas decisões, não cobra uns dos outros o cumprimento das mesmas e delega isto ao assessor, o grupo está de alguma forma sendo tutelado. Num outro ponto de vista, se mesmo após a capacitação para tal, o grupo não controla suas receitas e despesas, não planeja sua viabilidade econômica e fica à mercê apenas do trabalho técnico do assessor, ele não está aprendendo a andar com as próprias pernas, e isto é catastrófico para seu futuro.

Alguns assessores, adeptos da construção da autonomia a qualquer custo, consideram que sua intervenção pode ser perniciosa ao grupo por causar dependência, e buscam ficar na periferia dos acontecimentos. Estes entendem que o papel da assessoria é questionar, levantar os problemas, mas não se implicar nas questões reais de sobrevivência do empreendimento que seriam responsabilidade exclusiva dos seus membros. Levada a extremo esta atitude configura o abandono do grupo. Quando o assessor opta por não intervir, ou intervir apenas para cobrar do grupo o que este ainda não tem habilidade para fazer, ele também está tendo uma atitude catastrófica, pois desestimula as pessoas, reforça o estigma da pobreza que está introjetado no íntimo das pessoas mais pobres, que acreditam no mais das vezes que são incapazes.
Na medida em que a assessoria não orienta o grupo diante de suas dificuldades e atribui estas dificuldades a uma falta de comprometimento do grupo, a uma incapacidade para a autonomia, à tradição autoritária e paternalista da sociedade, etc. ela está reforçando a baixa estima dos empreendedores. Observa-se este tipo de condução quando o grupo não consegue seguir a via normal de uma reunião, em que se faz um balanço do passado, se discute os desafios a serem enfrentados e se define tarefas para o futuro. Em geral, o grupo “abandonado” se perde em discussões genéricas ou em acusações recíprocas e não consegue diagnosticar suas potencialidades e buscar meios de desfrutar delas, vendo apenas seu “lado negro”, suas dificuldades. Este grupo não só nunca será autônomo, como corre um sério risco de se auto-destruir.

Estes os modelos extremos não são encontrados facilmente no dia-a-dia da atividade de incubação. Provavelmente não se encontrará uma assessoria exclusivamente tutelar ou que abandona completamente o empreendimento. Há tendências. Uma possibilidade de evitar os problemas que estas tendências, quando levadas a extremo, podem trazer, é ter-se consciência de qual é o perfil predominante da assessoria, tanto do ponto de vista metodológico, quanto do perfil pessoal das pessoas que acompanham os empreendimentos. Tanto incubadores como empreendedores têm que fazer esta avaliação, de forma generosa e solidária, evitando acusações, mas levando em consideração o fato de que de modo geral, nos processos de incubação, todos estão querendo muito acertar. Cabe ao grupo de empreendedores saber com que tipo de assessoria esta em contato, para não sofrer destes exageros.


Conclusões

Os debates em torno das metodologias de incubação de empreendimentos solidários têm mobilizado as instituições de apoio ao associativismo econômico, especialmente no ambiente universitário, cujo foco predominante é o desenvolvimento de grupos sociais em torno de planos de negócios em diferentes ramos de atividade. Com o crescimento da Economia Solidária e das ações de agências financiadoras, cresce a idéia de que é preciso alterar a perspectiva dos projetos de incubação, de forma a abranger um conjunto de ações integradas em diversos níveis, otimizando os resultados.

Esta lógica baseia-se na compreensão de que a viabilidade dos empreendimentos está relacionada à articulação em redes ou cadeias produtivas, ou mesmo na perspectiva do desenvolvimento local. Efetivamente, a discussão das metodologias de incubação tem levado à idéia de que é preciso estruturar a produção e o consumo solidários. São poucas, entretanto, as experiências de construção destas redes, a exemplo do que registra Mance (2003). A expectativa, contudo é que o crescimento da Economia Solidária tenda a exigir soluções articuladas em redes solidárias.

Por outro lado, a necessidade de aperfeiçoamentos metodológicos e conceituais visando uma maior adequação da incubação de empreendimentos solidários às particularidades do público alvo aponta para necessidade do aprofundamento da abordagem antropológica e sociológica da incubação. Esta abordagem serviria a enfrentar questões decorrentes da natureza da atividade aproximada entre incubadores e membros dos empreendimentos, assim como dos efeitos da vivência da pobreza no comportamento dos membros dos empreendimentos associativos. Este trabalho procurou identificar desafios nestas novas perspectivas e discutir possíveis saídas para favorecer o sucesso das atividades desenvolvidas pelas incubadoras.



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