21 dezembro, 2010

TRABALHO DECENTE: UMA AGENDA PARA A BAHIA




Tatiana Dias Silva(1)  Nilton Vasconcelos Júnior(2)
Resumo

O objetivo deste artigo é apresentar o processo de construção da Agenda Bahia do Trabalho Decente. Trabalho Decente é uma formulação da Organização Internacional do Trabalho. A concepção de uma Agenda prevê a articulação de atores e ações voltadas para esse propósito, bem como o estímulo à valorização do trabalho nas estratégias de desenvolvimento. Para apresentar a experiência da Bahia, discute-se inicialmente o conceito do trabalho decente, sua articulação com o desenvolvimento e sua adoção pelo governo brasileiro. Parte-se, em seguida, para uma descrição do processo na Bahia, especialmente das estratégias de gestão, dos resultados e da dinâmica da coordenação intersetorial. Por fim, destacam-se os desafios da experiência, além de reflexões e contribuições para processos análogos de elaboração de agendas e compromissos interinstituicionais, em especial, no campo das políticas de trabalho.
[1] Assessora Especial da Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte da Bahia entre 2007 e julho de 2009. Atualmente é Técnica de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Mestre em Administração.
[2] Secretário do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte da Bahia. Professor do Centro Federal de Educação Tecnológica da Bahia. Doutor em Administração.
1. INTRODUÇÃO
A partir de 1999, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) passa a apresentar, como desafio a seus estados-membros, a adesão à proposta de construção de uma Agenda do Trabalho Decente. Trata-se de um compromisso global face à crise do emprego, buscando posicionar o trabalho como elemento central nas estratégias nacionais de desenvolvimento. Em seguimento ao mandato da OIT de estabelecer esforços para um mundo do trabalho que conduza à justiça social, o discurso em torno do trabalho decente é apresentado como uma proposta síntese.
Nesse âmbito, Trabalho Decente é entendido como uma ocupação produtiva, adequadamente remunerada, exercida em condições de liberdade, equidade e segurança, capaz de garantir uma vida digna. Esse conceito representa bem os ideais defendidos pelas instituições comprometidas com a justiça social e os direitos dos trabalhadores. Não é, portanto, inédito nesse campo. A novidade consiste no tempo e na forma com que a proposta se apresenta.
A bandeira do trabalho decente é lançada em resposta a um período de intensificação da crise do emprego, caracterizada tanto pelo aumento dos índices de desocupação como por aumento da precariedade dos postos de trabalho. É tempo também de rever o ideário neoliberal que defendia a desregulamentação e o enfoque financeiro como primordial. Trata-se de um marco para revisão do lugar do trabalho na sociedade. Por isso, a proposta da Agenda do Trabalho Decente tem como diretriz principal a inclusão do trabalho como aspecto central nas estratégias de desenvolvimento.
Por outro lado, a concepção de uma Agenda reconhece que o objetivo final ainda está distante e determina uma série de compromissos para que se possa acercar desse ideal. Estabelece-se, em decorrência, um pacto entre os vários atores, com a finalidade de desenvolver estratégias eficazes e compartilhadas para se aproximar dessa meta-visão. Ao aderir à Agenda do Trabalho Decente, os atores principais do mundo do trabalho – governo, trabalhadores e empregadores – adotam conjuntamente esse ideário e esse compromisso.
Tal proposta tem sido assumida por vários chefes de Estado, sinalizando a disposição de incluir o trabalho como elemento fundamental nas estratégias de desenvolvimento e a convicção de que o trabalho decente é meio fundamental para inclusão social (MTE, 2004).
Procura-se sintetizar no conceito de trabalho decente o itinerário de debates, proposições e esforços na busca por melhores condições nas ocupações produtivas. Essa proposta concentra-se em quatro pilares, quais sejam: a geração de ocupações de qualidade, a extensão da proteção social, o fortalecimento do diálogo social e a garantia dos princípios e direitos fundamentais no trabalho. Indicados em Declaração da OIT, de 1998, esses princípios e direitos referem-se à liberdade de associação, eliminação do trabalho forçado e do trabalho infantil, além da eliminação da discriminação no emprego (OIT, 1998, 2008).
O debate sobre o trabalho decente vem acompanhado de dois importantes elementos: a noção de agenda e a perspectiva de inserção do conceito nas estratégias de desenvolvimento.
O convite à adoção de uma Agenda para o trabalho decente, em diferentes níveis – global, hemisférico e nacional -, apresenta a idéia-força da integração de esforços baseada em um compromisso amplo e de longo prazo.
Trata-se também de um contraponto à centralidade da economia alicerçada em fluxos financeiros. A geração de mais e melhores empregos deve ser objetivo principal das ações e é preciso que essa meta não seja relegada apenas à categoria de externalidade positiva das estratégias de crescimento que, muitas vezes, têm resultados tão exíguos, ou tão concentrados, que não chegam a se concretizar em melhorias reais para os trabalhadores e para a população.
Portanto, a adesão à Agenda do trabalho decente implica estabelecer consenso sobre dois pontos fundamentais. O primeiro está relacionado com o reconhecimento de que o diálogo social entre governo, trabalhadores e empregadores é central para garantir meios de desenvolvimento que tragam melhorias para todos e que tenham o trabalho como elemento primordial. O segundo ponto é o entendimento de que o trabalho é a estratégia essencial para uma inclusão social realmente sustentável. Não obstante a importância e essencialidade das políticas de transferência de renda e de assistência social, identifica-se que o trabalho tem papel central na melhoria significativa das condições de vida de grande parcela da população, pelos ganhos refletidos tanto no poder aquisitivo, acesso a direitos atrelados ao trabalho, reconhecimento social, além da realização pessoal, que advém de condições de trabalho realmente dignas.
É a partir desse contexto que este artigo pretende apresentar a experiência da Bahia no desenvolvimento de uma Agenda do Trabalho Decente. Procura-se ressaltar a coordenação intersetorial e a abordagem interdisciplinar como essenciais tanto para compreensão como para intervenção no mundo do trabalho.
Tratar de uma Agenda apenas para a garantia ao trabalho, em um país cuja taxa de desocupação é de 8,3% (PNAD, 2009) já seria um grande desafio. Ao tratar de trabalho decente, considerando-se a acepção ampla do conceito, avalia-se que o déficit é ainda maior.
Espera-se que esta análise possa converter-se em oportunidade de reflexão tanto para os atores que participam desse processo como para aqueles que tenham condições de enriquecê-lo, com suas críticas e sugestões. Almeja-se também compartilhar esta experiência com aqueles que desejem avançar na implementação de outros projetos dessa natureza.
Esse texto se divide em mais três seções. Inicialmente retoma-se o conceito do trabalho decente, seu itinerário de formação e as relações que estabelece com o desenvolvimento, além de apresentar a experiência brasileira nesse campo.
A seção seguinte descreve a elaboração da Agenda Bahia do Trabalho Decente, dando ênfase à estratégia utilizada, seus resultados e dificuldades. Por fim, nas considerações finais, são destacadas contribuições para processos análogos, apontados os limites desta experiência, além de compartilhar reflexões que acompanharam o processo.
2. TRABALHO DECENTE: CONCEITO E TRAJETÓRIA NO BRASIL
O acesso a uma ocupação digna representa possibilidade de usufruto não somente dos direitos fundamentais do trabalho, mas também inserção social compreendida de maneira ampla. Representa tanto uma solução de inclusão produtiva, como meio fundamental para elevação da auto-estima e auto-realização do indivíduo (SACHS, 2004). O sujeito que tem no seu trabalho via de emancipação, no campo econômico, social e intelectual, alcança meios para acessar – ou para requerer o acesso – aos demais espaços sociais.
A Agenda do Trabalho Decente é uma resposta global no sentido de promover, pela via do desenvolvimento, espaço efetivo para o exercício dos direitos humanos e sociais, no intento à busca da paz e do respeito à dignidade humana ─ em sua concepção mais abrangente ─, em um contexto mundial marcado pela precarização das relações laborais e violação de direitos.
A abrangência do conceito de trabalho decente, aliada à convergência que sua formatação guarda em relação aos anseios por um mundo do trabalho mais equânime e solidário, permite sua aspiração e adoção por sociedades e realidades diversas.
Por sua vez, uma sociedade embasada nos ideais democráticos deve ter como pauta impositiva a ampliação e aprofundamento dos direitos humanos, a conquista de instâncias de diálogo social e o estabelecimento de padrões superiores de convivência e de exercício do poder e da participação. Nesse contexto, a demanda por estratégias de valorização do trabalho é conseqüência direta, em um processo dinâmico de construção de uma nova sociedade.
Para se alcançar o trabalho decente como aqui compreendido, o crescimento econômico é condição necessária, mas não suficiente. A efetividade desse projeto está condicionada a uma atenção especial voltada para setores que gerem mais empregos e ao embasamento em mecanismos – públicos e da organização social – que permitam melhor distribuição das riquezas e melhor qualidade da ocupação ofertada. A estratégia de desenvolvimento precisa ser requalificada.
A visão de Sachs (2004, p. 25) corrobora com esse argumento, quando destaca o fenômeno do crescimento sem emprego, resultante de uma combinação de fatores, tais como:
• introdução agressiva do progresso técnico poupador de trabalho nas indústrias;
• renúncia a uma política de salários altos (o fordismo) sacrificados no altar de uma busca desenfreada de lucros financeiros e a conseqüente redução do ritmo de crescimento da demanda efetiva, uma das causas principais do crescimento pífio;
• deslocamento das produções intensivas em mão-de-obra para plataformas de exportação situadas em países periféricos que se satisfazem com a competitividade espúria, lograda por meio de salários excessivamente baixos, longas jornadas de trabalho e ausência de proteção social.
Nesse sentido, a pauta do desenvolvimento social não pode estar relegada às forças do mercado e ser vista como conseqüência da prosperidade geral. Antes, deve fundamentar-se em diretrizes consolidadas que garantam bem estar de todos.
Segundo Penna Filho (2006), esta foi a tônica da Cúpula de Copenhague (Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Social), em 1995, reforçando-se como contraponto ao predomínio e exclusividade dos temas econômicos e da visão neoliberal na agenda internacional.
No fundo, tratava-se da compreensão de que o caminho trilhado de desenvolvimento econômico assentado em bases essencialmente liberais, ao sabor das diretrizes do livre mercado, era cada vez mais inviável tanto para a sociedade quanto para o meio ambiente. Enfim, começava-se a discutir a própria natureza da idéia de desenvolvimento (PENNA FILHO, 2006, p. 352).
A construção de uma Agenda traz como elemento basilar o redirecionamento da visão de desenvolvimento, a partir do destaque ao trabalho. Os setores mais avançados da economia, em que o nível de pesquisa e desenvolvimento alavancam a produtividade, cada vez mais requisitam menos mão de obra. São fundamentais, por constituírem o núcleo modernizador, mas a eles devem ser articuladas atividades intensivas em mão de obra na cadeia produtiva (SACHS, 2004).
Ademais, como se verificou no período recente de crise econômica, as políticas sociais, dentre elas as de mercado de trabalho, foram fundamentais para garantir proteção social e consumo, atuando de forma anti-cíclica.
Além da geração de mais empregos, é preciso garantir que as ocupações existentes e as vagas criadas sejam geradoras de trabalho decente de fato. O papel fiscalizador do estado (amparado em uma consistente base legal existente) potencializa essa dimensão. Contudo, a regulação deve ser absorvida pela sociedade, constituindo instâncias de controle social e de garantia de direitos. Uma iniciativa nesse sentido é a adesão de várias organizações ao Pacto Nacional pela erradicação do trabalho escravo, no qual as instituições signatárias comprometem-se a não estabelecer relação comercial com empresas que mantiveram trabalhadores em situação análoga à escravidão, relacionadas no cadastro de empregadores do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) (conhecido como “lista suja”), bem como se comprometem a colaborar com ações contra essa prática.
Recentemente o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) incluiu, em seus contratos de financiamento, cláusula restritiva a empresas presentes na “lista suja” ou envolvidas em outras violações (THENÓRIO, 2008).
São significativos os avanços na promoção de melhores condições de trabalho no Brasil, o que, no entanto, ainda está longe de garantir um mundo do trabalho efetivamente justo e que promova ampla inclusão social. Altas taxas de desemprego, informalidade, baixos níveis de proteção social, precarização do trabalho, entre outros problemas, são relevantes no cenário brasileiro. Outro ângulo importante na análise dos limites do mundo de trabalho brasileiro envolve uma atenção mais direcionada a grupos mais vulnerabilizados. Os indicadores relativos à situação laboral de mulheres, negros, jovens e pessoas com deficiência retratam bem a heterogeneidade e desigualdade do mundo do trabalho.
Como parte da estratégia de enfrentamento a essa realidade, o governo brasileiro consolidou diretrizes de intervenção por meio da Agenda Nacional de Trabalho Decente. Essa Agenda, elaborada de forma tripartite, tem como prioridades a geração de mais e melhores empregos, a erradicação do trabalho escravo e infantil e o fortalecimento dos atores tripartites. Após longo período de discussões no âmbito do Grupo de Trabalho Tripartite da Agenda Nacional de Trabalho Decente e do Comitê Executivo Interministerial, o Programa Nacional de Trabalho Decente foi apresentado no Pré-Lançamento da Conferência Nacional de Emprego e Trabalho Decente, em maio de 2010.
Ainda na esfera federal, encontra-se em elaboração a Agenda Nacional de Trabalho Decente para Juventude, por meio de Subcomitê formado no âmbito do Comitê executivo interministerial da Agenda Nacional de Trabalho Decente.
3. A IMPLEMENTAÇÃO DE UMA AGENDA DO TRABALHO DECENTE NA BAHIA
A adoção da proposta do Trabalho Decente pelo governo da Bahia configurou-se na primeira iniciativa em nível subnacional do gênero. Com efeito, foi nesse Estado que, anos antes, o governo brasileiro havia estabelecido “as bases dessa construção política” (MTE, 2004), quando, em2003, a capital baiana sediou a XIII Conferência Interamericana de Ministros do Trabalho, no âmbito da Organização dos Estados Americanos. Nessa ocasião, o compromisso de promoção do trabalho decente foi formulado nesses termos:
Fazemos um apelo aos governos para que assumam, com o apoio da OIT, o emprego como uma preocupação central e um elemento-chave para o desenvolvimento de planos que conduzam à erradicação da pobreza, permitam superar as situações de desigualdade e atraso que persistem em muitos países de nossa região e criem maiores oportunidades de progresso e bem-estar; e gerem espaços para diálogo de alto nível entre governos e os interlocutores sociais com as instituições financeiras internacionais e regionais, para a discussão da situação do emprego e de seu impacto atual nos níveis de pobreza, que contribua para o avanço na elaboração de políticas harmônicas no contexto do trabalho decente. Declaração de Salvador. (OEA, 2003)
Em 2007, iniciou-se a implementação dessa iniciativa no estado, adotando-a como diretriz principal para as intervenções do governo estadual no mundo do trabalho. Todavia, o avanço dessa proposta implicava extrapolar os limites setoriais, ampliar o debate e envolver outros atores que já desenvolviam ações nesse campo.
Os primeiros movimentos deram conta de estabelecer mecanismos de cooperação com o Ministério do Trabalho e Emprego e a Organização Internacional do Trabalho. O apoio institucional recebido por ambos permitiu desenvolver, com base na atuação nacional e em experiências internacionais, o caminho para implementação da Agenda de Trabalho decente para o Estado.
A concepção de uma agenda de compromissos para promover o trabalho decente é uma formulação que visa integrar políticas e estabelecer ambiente e informações necessários para formação de parcerias. Ao reunir compromissos conjuntos, permitem-se identificar lacunas, sobreposições, possibilidades de cooperação, além de proporcionar uma visão ampla, tanto dos problemas como das ações encetadas para seu enfrentamento. Visa também incluir, na pauta da sociedade, temas fundamentais, como o alcance a melhores condições de trabalho.
Uma Agenda do Trabalho Decente em âmbito subnacional traz um enfoque local à proposta depromoção do trabalho decente, favorecendo, pela proximidade e nível executivo dos atores, melhor operacionalização do projeto. Todavia, articulações locais como a agenda em tela, que tratam de temas vastos, guardam uma limitação significativa, uma vez que políticas voltadas para o trabalho não podem prescindir de ações abrangentes, em âmbito nacional, algumas das quais são de competência exclusiva da União. O governo central que, em última instância, é o articulador das políticas macro econômicas, deve estar alinhado com as ações locais, e direcionado a maior crescimento econômico, com compromisso social.
3.1. Gestão da Agenda Bahia do Trabalho Decente: conferências, comitê gestor e câmaras temáticas
Considerando a abrangência e complexidade do tema e a heterogeneidade dos atores e interesses envolvidos, optou-se por uma estratégia participativa para a construção desse projeto. Foram criadas instâncias de deliberação e consulta, resultando na realização de uma conferência estadual, na criação de um Comitê Gestor e na implantação de câmaras temáticas, experiências que serão detalhadas a seguir.
Com a finalidade de ampliar o debate e socializar a proposta, em 2007 foi promovida a I Conferência Estadual do Trabalho Decente, concebida como um ponto de partida(1). A expectativa era reunir atores que pudessem contribuir no debate sobre as diretrizes de uma Agenda do trabalho decente, bem como socializar a proposta e o conceito.
A Conferência Estadual do Trabalho Decente teve como objetivo divulgar a temática do Trabalho Decente, sensibilizar os atores sociais e realizar uma ampla consulta como forma de obter subsídios iniciais para o processo de formulação da Agenda estadual. Reunindo cerca de 400 participantes, entre representantes de organizações de trabalhadores e de organizações de empregadores, de organismos governamentais e não governamentais, a Conferência promoveu debates e definiu propostas em torno dos seguintes temas: geração de trabalho e renda, juventude, proteção social, condições de trabalho, igualdade de oportunidade e tratamento, combate à discriminação, enfrentamento ao trabalho infantil e ao trabalho escravo, fortalecimento dos atores tripartites e diálogo social.
Por ocasião da Conferência, foram assinados dois importantes instrumentos normativos para a condução desse processo. O primeiro foi um Memorando de Entendimento entre o Governo da Bahia e a Organização Internacional do Trabalho, cujo objeto foi o estabelecimento de cooperação técnica para elaboração da Agenda. O segundo foi decreto estadual que criava um Grupo de Trabalho Executivo (GTE), com a finalidade de elaborar a Agenda e organizar o processo para sua construção. Esse grupo foi formado inicialmente por sete secretarias de estado, o Conselho Estadual Tripartite e Paritário de Trabalho e Renda(2), além da Delegacia Regional do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho.
Com o desenvolvimento do processo de consultas e debates sobre a Agenda, houve necessidade de ampliação do GTE que, em 2008, foi formalmente constituído como Comitê Gestor do Programa Bahia do Trabalho Decente. Nesse novo formato, essencial para a elaboração de todo modelo de Agenda, estabelecia-se a participação de 27 instituições.
O Comitê é o núcleo central da Agenda do Trabalho Decente. Tem, em sua composição, representação governamental (estadual e federal), representação dos trabalhadores (Centrais Sindicais), representação dos empregadores (Federações) e outras entidades de relevância para o tema, como a Associação dos Magistrados do Trabalho, e a cooperação técnica da Organização Internacional do Trabalho.
Dentre as ações empreendidas pelo Comitê, destacam-se: a sistematização das ações realizadas pelas diferentes entidades para promoção de trabalho decente; a elaboração de panoramas sobre as áreas diversas relacionadas ao mundo do trabalho; a definição das prioridades para a Agenda do Trabalho Decente e a consolidação de seu texto final. De forma contínua, esse grupo tem como atribuição o acompanhamento e avaliação das ações presentes na Agenda Bahia do Trabalho Decente.
A articulação entre os representantes e a socialização de informações entre as entidades envolvidas no Comitê possibilitaram a identificação dos problemas mais relevantes a serem enfrentados, das potencialidades de atuação conjunta e das lacunas de intervenção. Por conseguinte, tornou-se possível deliberar sobre os eixos prioritários de ação.
Desse modo, a partir do Comitê e com base nos resultados da Conferência, foram definidas as prioridades da Agenda em sete eixos temáticos: Erradicação do Trabalho Escravo, Erradicação do Trabalho Infantil, Juventude, Serviço Público, Segurança e Saúde do Trabalhador, Promoção da Igualdade e Trabalho Doméstico. Posteriormente, foi incluído o eixo “Biocombustíveis”. Destaca-se que algumas das prioridades definidas não estavam explicitamente postas nas Agendas de Trabalho Decente de maior abrangência, como a Agenda Nacional ou a Hemisférica - é o caso do trabalho doméstico e do serviço público.
Definidas as áreas de atuação da Agenda, desenvolveu-se, como mecanismo de ampliação do diálogo social e debate participativo dos temas e diretrizes de ação, a formação de Câmaras Temáticas. Essas se caracterizam como instâncias para as quais devem ser convidados profissionais e representações de uma determinada área, formadas para dedicarem-se ao debate, formulação de propostas, coordenação e acompanhamento de ações para cada um dos temas prioritários da Agenda Bahia do Trabalho Decente(3).
Havia, desde o início, uma preocupação em não duplicar instâncias de debate. Em várias áreas de atuação, já havia diversas instâncias consolidadas, em geral, com finalidades diferenciadas, mas que se dedicavam à discussão dos principais problemas na área. Não raro os representantes designados para delas participarem tinham que se esforçar para inserir-se em vários desses fóruns. O Comitê procurou estabelecer meios para cooperar com os esforços existentes, evitando concorrer com eles, mesmo que indiretamente. Por esse motivo, acordou-se que as Câmaras Temáticas poderiam ser substituídas por um fórum, comissão ou conselho já existente que assumisse as atribuições a elas determinadas. Essa opção foi decorrência da experiência inicial do projeto. O debate sobre as propostas da Agenda foi realizado também em reuniões do Fórum de Meio Ambiente do Trabalho (FORUMAT), Fórum Estadual de Combate ao Tráfico de Pessoas, entre outros. Com essa estratégia, procurou-se conciliar as metas institucionais e os acordos já existentes com a nova proposta.
Nas reuniões das Câmaras foi possível incorporar diferentes atores e perspectivas ao debate e, de tal modo, enriquecer o conjunto das propostas. A ampliação do diálogo social também promoveu maior aproximação de segmentos da sociedade com a temática do trabalho e com a concepção do trabalho decente.
A ampliação do debate foi alcançada igualmente por meio de outros canais, extrapolando, com alguma frequência, o circuito específico do mundo do trabalho. Uma importante iniciativa, nesse sentido, foi a incorporação do conceito de Trabalho Decente aos debates em torno do planejamento governamental. O orçamento governamental (Plano Plurianual - PPA) do estado da Bahia foi desenvolvido por meio de um processo participativo, com várias plenárias regionais e com relevante participação popular. A metodologia das plenárias envolveu a organização de grupos temáticos para formulação de propostas. Desde esse momento, o trabalho decente foi pautado como um grupo temático, dentro da diretriz estratégica “Promover o desenvolvimento com inclusão social”. Em decorrência dessa discussão de base sobre o tema, o trabalho decente configurou-se como um programa específico do PPA, que incorpora ações voltadas ao sistema público de emprego, trabalho e renda e a própria construção da Agenda do Trabalho Decente. No modelo do PPA, outras ações do estado com o objetivo direto de promoção de trabalho decente podem ser relacionadas a esse programa como ações transversais, permitindo melhor acompanhamento geral das atividades governamentais com esse propósito (BAHIA, 2007).
3.2. O Programa Bahia do Trabalho Decente
Com base no modelo de gestão apresentado, a implementação das intervenções foi consolidada em Planos de Ação, elaborados para cada eixo temático. Com o objetivo primordial de influenciar a condução das políticas públicas e ações privadas, em diversas áreas, de forma a contribuírem efetivamente para promoção do trabalho decente, os planos foram consolidados no Programa Bahia do Trabalho Decente.
Priorizando o diálogo social, que é um dos pilares do trabalho decente, foram realizadas diversas atividades, entre seminários, oficinas e reuniões, no âmbito das Câmaras Temáticas, para garantir que o Programa contemplasse as diversas demandas que envolvem os atores sociais relacionados a cada um dos eixos prioritários. Os resultados de conferências estaduais e nacionais relacionadas ao tema, bem como outros planos setoriais, foram observados, culminando no lançamento do Programa no início de 2010(4).
O ponto norteador durante a consolidação de cada Plano foi primar para que o Programa fosse executável, operacional, transversal e sustentável, objetivando atingir aos princípios contidos no conceito do trabalho decente. Buscou-se ainda garantir a primazia dos quatro pilares constitutivos dessa proposta, de respeito aos princípios e direitos fundamentais no trabalho, de geração de mais e melhores empregos, de extensão da proteção social e de promoção do diálogo social. O Programa Bahia do Trabalho Decente representa um conjunto de iniciativas que busca associar desenvolvimento econômico com justiça social, colocando o trabalho decente como elemento central dessa estratégia.
A construção participativa possibilitou que o Programa refletisse anseios abrangentes, bem como que contivesse as experiências de instituições já envolvidas com as ações, as quais participaram de todo o processo de construção. Além disso, está também expresso no Programa o caráter multidisciplinar e a transversalidade, além do compartilhamento de responsabilidades, conceitos inerentes à Agenda de trabalho decente. Com esses elementos e uma planejada institucionalidade, é possível que esta iniciativa se consolide como uma política de estado, com a meta de que seja incorporada aos planos estratégicos, incluindo-se o trabalho decente entre os macro-objetivos do governo, concomitantemente com sua incorporação nas práticas de gestão públicas e privadas.
3.3. Alguns resultados em áreas prioritárias: cooperação intersetorial e transversalidade
Além da formação do Programa e do processo que enseja, muitas atividades foram desenvolvidas por meio dessa ampla articulação. A convergência de esforços e de metas institucionais tem proporcionado ganho operacional e maior eficácia estratégica às atividades. Serão destacadas, a seguir, iniciativas que ilustram o enfoque multidisciplinar e transversal para a condução das políticas na área do trabalho.
a. Valorização do Trabalho Doméstico
No Brasil, o trabalho doméstico corresponde a mais de 7% da população ocupada (PNAD, 2009). Embora tenha grande representatividade no contingente de trabalhadores, essa categoria enfrenta condições muito mais precárias do que a média. A informalidade, os baixos rendimentos, a reduzida cobertura previdenciária, somadas ao estigma de discriminação que a categoria enfrenta, torna-os um grupo altamente vulnerável. Ademais, trabalhadoras e trabalhadores domésticos têm assegurados menos direitos que os demais. Por trata-se de grande maioria de mulheres e negros, incorpora e reproduz a discriminação de gênero e raça, aspectos marcantes do mercado de trabalho no país.
Na Agenda Bahia do Trabalho Decente, esta categoria foi considerada um dos eixos prioritários de atuação. Diante desse contexto de representatividade e vulnerabilidade, a categoria ressente-se de uma política mais direcionada a suas necessidades. Em âmbito federal, desenvolveu-se um projeto de concepção considerada ampla e consistente (Trabalho Doméstico Cidadão), mas com atendimento reduzido e descontínuo. No âmbito da Agenda Bahia do Trabalho Decente, passou-se a considerar a importância desse grupo e a articular uma série de ações, que envolvem a profissionalização, qualificação, elevação da escolaridade, educação previdenciária, orientação trabalhista para empregados e empregadores, distribuição de material informativo, assistência técnica para projetos habitacionais e eventos de sensibilização. Essa convergência culminou em um evento comemorativo no dia nacional dedicado à categoria(5), em 2009, reunindo, em uma feira de serviços, mais de 20 entidades. Muitas destas instituições não tinham qualquer ação direcionada a esse público, mas, a partir desse debate, passou a considerar atenção mais específica a essa categoria.
b. Formação de multiplicadores para igualdade de gênero e raça
Promover a igualdade de gênero e raça por meio dos programas governamentais é igualmente uma das diretrizes na Agenda Bahia do Trabalho Decente. Tal objetivo, no entanto, envolve uma série de conteúdos e competências diversificadas. Para implementá-lo, reuniram-se três secretarias do governo estadual – trabalho, promoção da igualdade e administração. A proposta era ampliar o debate sobre como as políticas governamentais poderiam ter recortes específicos não apenas para combater a pobreza, mas também para enfrentar a desigualdade. Para tanto, além do convencimento sobre a realidade desigual e sobre a heterogeneidade das situações de pobreza, era preciso também garantir instrumentos para a mudança. Nesse sentido, as três pastas passaram a trabalhar esses propósitos e conteúdos por meio do Sistema de Universidade Corporativa do estado. Assim, foi oferecida formação para constituição de multiplicadores entre servidores públicos de diversos órgãos do Estado, a fim de impulsionar processos de aprendizagem e reflexão voltados à transversalidade de gênero, raça e equidade nas políticas públicas. Esta atividade conta com a cooperação da OIT(6), que colabora com conteúdo já desenvolvido para as temáticas e assistência técnica de seus profissionais na fase inicial do projeto. Em 2009, foi iniciada a primeira Oficina, com servidores do SINEBAHIA(7). Já estão previstas turmas com servidores dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), do Serviço de Atendimento ao Cidadão (SAC) e com servidores da Polícia Militar(8), deliberadamente órgãos em contato direto com a população. A proposta é incorporar o Programa GRPE ao cronograma de capacitação dos servidores públicos do estado.
c. Lei do Trabalho Decente
Uma das iniciativas com maior potencial em torno da diretriz de valorização do trabalho foi aprovação da Lei Estadual 11.479/2009, proposta pelo Comitê Gestor do Programa Bahia do Trabalho Decente. A lei institui restrições à concessão e à manutenção de financiamentos e incentivos fiscais estaduais a empregadores que não adotem práticas de trabalho decente e não atendam à legislação que trata de cotas para pessoas com deficiência e jovens aprendizes. Deste modo, a norma exige que empregadores beneficiários de incentivos fiscais e financiamentos concedidos pelo Estado da Bahia garantam condições de trabalho dignas, seguras e saudáveis, além de vedar a concessão e a manutenção de financiamentos e incentivos fiscais a empregadores que sejam identificados no Cadastro do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) como empregadores que exploram trabalhadores na condição análoga à de escravos. Para os fins dessa lei, constituem práticas de trabalho decente as que importem o cumprimento das normas de combate à discriminação de raça, gênero, direção ou orientação sexual e religião, ao trabalho infantil e ao trabalho escravo.
A experiência baiana indica, ainda, que as políticas de trabalho, emprego e renda podem ser desenvolvidas transversalmente na estrutura burocrática do estado, articulando-se com políticas de gênero e etnia, de saúde, de justiça e direitos humanos, de desenvolvimento social, de valorização do servidor e de desenvolvimento econômico.
Isto não quer dizer que o aprimoramento da Agenda não requeira avanços na própria política específica do trabalho, contribuindo, por exemplo, para a internalização do trabalho decente às ações tradicionais de intermediação de mão de obra e de qualificação profissional, tendo em vista que são ferramentas importantes para se buscar a promoção da igualdade no trabalho e a inclusão produtiva.
Além dessas iniciativas, que retratam mais os ganhos de cooperação obtidos com a Agenda, há ainda uma série de outras ações desenvolvidas com essa dinâmica e outras que foram constituídas por estímulo da Agenda ou ainda ações, de âmbito interno de cada órgão, que foram reformuladas ou revistas com base em seus princípios(9).
3.4. Cooperação Internacional
A Agenda Bahia do Trabalho Decente foi considerada pela OIT como a primeira iniciativa em nível subnacional no mundo. Por essa razão, foi tema de apresentação por ocasião da 97ª Conferência Internacional do Trabalho,em Genebra. Assumindo papel difusor dessa experiência em nível local, o Governo da Bahia propôs a inclusão do tema no Foro Consultivo de Cidades e Regiões do Mercosul (FCCR), instância formal na estrutura do Mercosul, além de cooperar com a formação de novas agendas no Brasil e fora do país.
No âmbito do FCCR, 27 governantes assinaram o Termo de Compromisso para Promoção do Trabalho Decente, em reunião paralela à Cúpula de Chefes de Estado do Mercosul, realizada na Bahia, em 2008. Como desdobramento, foi realizado, em 2009, o seminário “Agendas Locais de Trabalho Decente: uma estratégia de valorização do mundo do trabalho”, reunindo signatários do pacto.
A ABTD foi apresentada em eventos nacionais e internacionais e ainda para representantes de governos de outros países(10) que visitaram a Bahia especialmente para esse fim. Desse modo, o debate sobre o trabalho decente e a reflexão sobre a estratégia em curso no Governo da Bahia pôde ser estendido a uma vasta gama de pesquisadores e atores do mundo do trabalho. Essa exposição possibilitou apropriar-se da reflexão sobre a temática em vários setores, espaços sociedades em diferentes áreas do conhecimento, em um rico processo de trocas e aprendizagem, contribuindo, sobretudo, para aprimorar o processo.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para continuidade da iniciativa, outros elementos estão postos, como a ampliação das ações existentes, a inclusão de outros atores e compromisso permanente dos atuais apoiadores, a difusão do projeto, seu monitoramento e acompanhamento.
O desenvolvimento da Agenda Bahia do Trabalho Decente exige uma ação sistemática em diversas frentes, e não apenas das políticas de trabalho stricto sensu. Por isso mesmo, um fator determinante para o seu êxito até a atual etapa foi ter sido encarada como uma meta de governo e incorporada à sua visão estratégica. A cooperação interinstitucional igualmente garante esse sentido mais perene à política adotada.
Cabe destacar alguns desafios. Um deles refere-se à transversalidade do tema nas políticas econômicas. Incorporar cláusulas sociais nas ações relacionadas à concessão de crédito, compras governamentais e incentivos fiscais é fundamental e factível. Depende de vontade política e sua inclusão traduz-se em elemento de interdependência entre o desenvolvimento econômico e o social. Melhor ainda, traduz-se em elemento de intercessão essencial para o alcance de novos patamares em termos de promoção da igualdade e justiça social.
A proposta da Agenda também exige intensa cooperação interinstitucional para compatibilizar metas e competências, direcionando-as para um objetivo comum, sem negligenciar as especificidades de cada entidade, sua dinâmica particular e seus colaboradores. Nesse sentido, não são triviais os desafios de transversalidade e da cooperação. Embora a percepção compartilhada da interdependência seja fundamental (IPEA, 2009), não é uma noção clara para todos os atores, muitos dos quais têm vínculos institucionais diferenciados e trajetória de atuação mais isolada. Vale ressaltar também a descontinuidade na direção de várias instituições, o que pode representar comprometimento na ordem de prioridade que a Agenda representa nos distintos planejamentos.
Outro elemento importante é o financiamento de uma Agenda de Trabalho Decente. Por um lado, a necessidade de maior articulação intersetorial e a atenção a novos problemas, no primeiro momento, introduz dispêndios não programados, mas que podem ser, em alguma medida, absorvidos pelas estruturas orçamentárias de cada órgão e da instância coordenadora do projeto e institucionalizados em momento seguinte. Por outro lado, há que se salientar que, no âmbito local, a inclusão de novas demandas pode representar descompasso com as metas federativas ou nacionais, limitando a margem de atuação de algumas entidades para abarcar outros projetos.
Outro desafio significativo é a análise de impacto da Agenda do trabalho decente, em dois níveis: como política específica e como conjunto de ações finalísticas afins, como saúde e segurança,qualificação, combate ao trabalho escravo e infantil, por exemplo. Por conseguinte, a definição e o acompanhamento de indicadores de trabalho decente serão decisivos para avaliar os resultados obtidos e para promover o redirecionamento de estratégias que visam a possibilitar que o trabalho decente seja realmente vetor de desenvolvimento e governança democrática. Ou seja, a análise dos resultados dessa Agenda não pode se restringir à eficiência e eficácia das ações isoladas; deve remeter sempre aos objetivos mais amplos dessa proposta: o trabalho decente e o desenvolvimento com justiça social.
Nesse ponto, o fortalecimento dos atores tripartites, o diálogo e o controle social são essenciais para o desenvolvimento e sustentabilidade de iniciativas análogas, a fim de que estas reflitam os anseios populares, sejam eficientemente geridas e perdurem como políticas de estado, superando o caráter transitório dos governos.
Ademais, cabe ressaltar que, em época de crise mundial, a necessidade de sustentar uma Agenda para promoção de trabalho decente torna-se mais premente. Se o status antes da crise era preocupante, com seus efeitos recessivos, a situação econômica, e em especial dos trabalhadores e suas famílias, passa a ser ainda mais desafiadora. Tais aspectos são reafirmados no recente Pacto Mundial pelo Emprego, lançado à época da 98ª Conferência Internacional do Trabalho, que destaca que à crise atual devem ser dirigidas respostas baseadas no trabalho decente − acelerar a criação de postos de trabalho e a recuperação do emprego e apoiar as empresas; estabelecer sistemas de proteção social e proteção das pessoas; fortalecer o respeito às normas internacionais do trabalho; primar pelo diálogo social: negociar coletivamente, identificar as prioridades e estimular a ação (OIT, 2009).
A análise do caso da Agenda Bahia do Trabalho Decente, em sua constituição e desenvolvimento, apresenta elementos empíricos para formulação de políticas públicas que compreendam a multidisciplinariedade e multideterminação de complexos problemas da nossa sociedade, tal como são os desafios inerentes ao mundo do trabalho. Por conseguinte, inovar em estratégias de coordenação intersetorial que incorporem o entendimento dessa complexidade é primordial para maior efetividade da gestão pública.
Referências

30 setembro, 2010

Mundo do Trabalho e Crise

Nilton Vasconcelos*

Introdução**

Ao discutir os cenários possíveis do mundo do trabalho no pós-crise, é preciso ter em conta a natureza do desenvolvimento capitalista. O mercado de trabalho sofreu, antes mesmo da crise de 2007-2009, profundos ajustes decorrentes da reestruturação produtiva iniciada ainda no século passado, quadro este agravado com a crescente financeirização da economia que também remonta algumas décadas.

Assim, analisaremos neste texto algumas características que vem assumindo o mercado de trabalho no Brasil e suas perspectivas, sem deixar de observar que o quadro internacional sinaliza para novas crises que se gestam.

A última crise, cuja intensidade estimulou, de início, comparações com a Grande Crise Capitalista de 1929, atingiu em cheio o capital financeiro e se desenvolveu a partir do centro em direção à periferia da economia mundial. Esta particularidade, contudo, não tornou menos perversos os seus reflexos sobre todo o globo. Embora o impacto sobre as economias centrais tenha sido mais intenso num primeiro momento, o alto grau de integração resultante da intensificação do comércio internacional de bens e serviços, e especialmente da atividade financeira, fez com que os seus efeitos chegassem também às economias periféricas, que, em geral, têm estruturas sócio-econômicas mais sensíveis.

O trabalho como um dos fatores essenciais do sistema econômico também padece, refletindo a crise do capital. A força de trabalho como de outras vezes, está entre as primeiras vítimas com o fechamento de oportunidades de emprego, de início nos bancos e no sistema financeiro, em seguida na indústria, na agricultura, no comércio, e nos demais segmentos do setor serviço.

As conseqüências da quebra de instituições centenárias, que arrastou tantas outras empresas para o abismo, não se produzem igualmente, ou de forma homogênea nos diversos países. Ao contrário, as discrepâncias entre as economias das nações, foram acentuadas pelas políticas da fase precedente, fundadas no estímulo à abertura de mercados – genérica e erroneamente chamadas de globalização, de modo que o impacto sobre o mercado de trabalho tende a se manifestar, pelo mesmo mecanismo, de forma mais agravada nas economias menos protegidas e mais frágeis.

Uma das manifestações mais evidentes deste processo é o revigorado protecionismo dos países centrais com políticas anti-imigração, estimuladas pelo nacionalismo e pelo racismo, fazendo retornar aos países de origem trabalhadores antes indispensáveis na execução de tarefas consideradas menos nobres.

Os efeitos da crise, portanto, não alcançam homogeneamente aos trabalhadores pelo mundo afora. Também não se pode afirmar que serão facilmente superados os mecanismos que a deflagraram. A Conferência Internacional do Trabalho, em Genebra, em junho de 2009, salientou a prolongada perspectiva de aumento do desemprego e agudização da pobreza e da desigualdade.

O entrelaçamento entre os setores financeiro e produtivo, elevado a altos níveis, resultou na eliminação de milhões de postos de trabalho. Esta crise chegou num período histórico marcado pela hegemonia das concepções teóricas baseadas na preponderância da lógica do capital e do mercado sobre outras dimensões da atividade humana.

Chama-se aqui a atenção para este acontecimento, também pelo significado intrínseco à própria crise: o socorro organizado pelo Estado capitalista, com recursos públicos, para salvar o mercado e as suas instituições, após décadas e décadas de cantilena sobre o necessário afastamento do Estado do ambiente econômico, em função da sua suposta ineficiência. Circunstância irônica e trágica ao mesmo tempo. Naturalmente, os ideólogos do modelo ora abalado realizam novos malabarismos teóricos para explicar e justificar – à sua maneira – a superioridade do sistema, e, possivelmente (não se deve tomar como surpresa), apontar “intromissões” do próprio Estado, no passado, como fator deflagrador da crise atual.

Ao contrário, esta crise tem sua origem na subordinação do trabalho a outras esferas, notadamente o capital financeiro, e expressa, evidentemente, as limitações de um modelo econômico insustentável.

A contínua desvalorização do trabalho imposta por políticas de cunho neoliberal nas últimas décadas em todo o mundo produziu o aumento do desemprego e da pobreza, e o achatamento salarial. As condições de trabalho se deterioraram – com o incremento da carga horária laboral, a submissão a atividades exaustivas, o crescimento do trabalho eventual e informal, entre outras precariedades. Assim, a insegurança, a desigualdade, a inadequada remuneração e a falta de liberdade, passaram a comprometer uma evolução dirigida à valorização e à dignidade no mundo do trabalho.

Este quadro socioeconômico é agora agravado, e sobre ele devem estar atentos os formuladores de política pública do trabalho. Ampliar as conquistas do trabalho e restringir a influência do mercado através da observância de normas rigorosas parece ser um caminho a ser trilhado. Não se pode imaginar, entretanto, que medidas que não alterem os elementos propulsores da crise possam obter sucesso ao ponto de reverter as tendências já mencionadas. Medidas anticíclicas trazem os genes econômicos do sistema, e não se propõem a alterá-los na essência.

Neste quadro, é um grande avanço o estabelecimento de um compromisso por parte dos mandantes tripartites da Organização Internacional do Trabalho, que decidiram firmar um Pacto Mundial para o Emprego, colocando a geração de postos de trabalho e a proteção social como elementos centrais das políticas econômicas e sociais (OIT, 2009). Propugna-se naquele documento a promoção do Trabalho Decente como estratégia de enfrentamento da crise tendo como base políticas que visem 1) acelerar a criação de postos de trabalho; 2) estabelecer sistemas de proteção social; 3) fortalecer o respeito a normas internacionais; e 4) estimular o diálogo social.

Sem dúvida é indispensável destacar os pontos acima formulados, que serviram de fundamento ao Pacto Mundial para o Emprego, cabendo a cada um dos signatários adequar estes aspectos, evidentemente, às circunstâncias de cada país e ao nível de desenvolvimento das políticas públicas do trabalho. São eixos que tem norteado a atuação da Organização Internacional do Trabalho, cuja reafirmação revela coerência e firmeza de propósitos do mandado que lhe foi confiado.

Em face deste contexto, propõe-se neste texto analisar algumas das características do mercado de trabalho brasileiro e os desafios da superação dos entraves na promoção do trabalho digno no contexto acima referenciado.

O Brasil no cenário do trabalho

Mesmo entre os países em desenvolvimento, especialmente o grupo denominado de BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China), observa-se um variado quadro das relações de trabalho, quanto ao grau de formalização do emprego, do nível de desenvolvimento das normas trabalhistas e da proteção social em particular. Esta diversidade revela a complexidade da abordagem do problema em plano mundial, significando dizer que considerada a formulação de caráter geral no âmbito da OIT, e preservada a autonomia de cada país, trata-se de conhecer profundamente as realidades específicas e estabelecer metas factíveis para o enfrentamento dos déficits de trabalho decente, sobretudo, em momento de uma crise de grande envergadura. Vale ressaltar que a promoção do trabalho decente terá tanto mais êxito quanto este conceito puder ser traduzido eficazmente para os contextos nacionais.

No Brasil, registram-se ao longo do século XX importantes conquistas para os trabalhadores do ponto de vista da organização sindical, da regulamentação das relações do trabalho em diversos níveis, incluindo a implantação dos Tribunais do Trabalho, do Ministério Público do Trabalho e do Ministério do Trabalho e Emprego. A existência destas instituições assegura políticas públicas continuadas na regulação e fiscalização do trabalho, a manutenção do sistema público de emprego de qualificação e intermediação de mão de obra, do seguro desemprego, das normas sobre saúde e segurança do trabalho, entre outras. É forçoso, entretanto, considerar, que é preciso ampliar a cobertura destes serviços e benefícios, atingindo mais e mais trabalhadores.

Os chamados déficits de Trabalho Decente podem ser observados ao se analisar distintos aspectos da atividade daqueles que vivem do trabalho. Ainda são expressivos, por exemplo, os índices de acidentes de trabalho, cujo número aumentou 13,4% em 2008, comparado com o ano anterior. Foram registradas naquele ano 2,7 mil mortes por acidentes do trabalho em todo o país. Considere-se o agravante que as estatísticas existentes abarcam apenas os segurados, portanto, os acidentes com trabalhadores informais não são contabilizadas (Anuário, 2009).

Entre os jovens, a taxa de desemprego continua alta, representando, em média, duas vezes a taxa de desemprego registrada para os trabalhadores em geral. O desemprego também é maior entre mulheres que homens, apesar do crescimento da participação feminina no mercado. Da mesma forma, há mais desempregados entre negros que entre brancos, assim como, as estatísticas lhes são desfavoráveis quanto ao rendimento e qualidade da ocupação. São aspectos da desigualdade no mundo do trabalho que se deve procurar alterar através da ação do Estado.

É sabido, contudo, que o nosso país tem feito um grande esforço, reconhecido internacionalmente, para enfrentar situações efetivamente aviltantes no ambiente do trabalho, notadamente visando a erradicação do trabalho forçado e do trabalho infantil. Este esforço coordenado pelo governo federal tem sido persistente, a despeito de inúmeras pressões internas, e tem contribuído para o debate nacional sobre a precarização do trabalho e as medidas para superá-la.

No que diz respeito ao trabalho forçado (escravo) obteve-se êxito nas operações de resgate dos trabalhadores da condição degradante, garantindo-lhes todos os direitos trabalhistas, indenizações, seguro desemprego e, mais recentemente, apoio na inserção no mercado de trabalho. Ampliaram-se as punições aos empregadores em cujas terras são resgatados trabalhadores em condição análoga à escravidão, impedindo-lhes o acesso ao crédito oficial, sem prejuízo de penalidades administrativas e judiciais. O crescimento dos resgates de trabalhadores em condição análoga ao trabalho escravo na colheita da cana de açúcar, em particular, tem estimulado o empresariado do setor a estabelecer acordos com o governo federal visando a sua erradicação, inclusive porque a existência daquela prática pode impor sanções econômicas à comercialização da sua produção. Estratégias semelhantes já haviam adotado as empresas siderúrgicas que deixaram de adquirir carvão de empresas em cujas terras tivesse havido resgate de trabalhadores em regime de trabalho forçado.

Além de combater e buscar a eliminação das piores formas de trabalho degradante, o Brasil tem perseguido combater a pobreza e a fome com um vigoroso programa de transferência de renda, destacando-se a abrangência do Programa Bolsa Família que atinge 12 milhões de famílias, em 2009. Além do subsídio mensal, tem sido tomadas medidas complementares de estímulo à inserção produtiva, e a melhoria da qualidade de vida. Ações de qualificação profissional nas áreas de construção civil e turismo, entre outras, visam o público do Programa de modo a contribuir com a sua emancipação. Na atualidade, o observado incremento do consumo das famílias de baixa renda tem sido relacionado à implementação do Programa.

Outra medida de enorme abrangência social é a política de valorização do Salário Mínimo[1] que promoveu, em termos reais, um aumento de 53,67%, entre 2002 e 2010 (DIEESE, 2010). Apenas estas duas medidas, não bastassem os efeitos sociais diretos, tiveram grande impacto na atividade econômica, que pode ser facilmente observado nas regiões mais pobres do país. Assim, diferentemente do que previam aqueles que se opunham à valorização do salário mínimo, não só a medida não causou demissões, como, ao inverso, gerou novos empregos tendo em vista o aumento da atividade econômica.

Com uma população economicamente ativa estimada em 98,8 milhões de pessoas e uma população ocupada de 90,8 milhões de trabalhadores, em 2007(DIEESE, 2009), contabiliza-se um total de 58,8 milhões de empregados no Brasil, incluindo os trabalhadores domésticos[2]. Destes empregados, contudo, uma parte expressiva permanece na informalidade, como veremos a seguir.

Segundo os dados divulgados pelo Ministério de Trabalho e Emprego referentes à RAIS[3], ao final de 2008 contabilizaram-se no país 39,4 milhões empregos formais, entendido como vínculos empregatícios no setor público e privado. A significativa diferença entre o número total de empregados e o estoque de empregos formais, deve ser comparada, entretanto, com a evolução recente da formalização dos vínculos empregatícios. Efetivamente, no período de 2001 a 2008, a geração de emprego formal foi de 13,2 milhões, o que representa mais de três vezes mais o emprego formal gerado em toda a década de 90, segundo o mesmo indicador. Mais relevante ainda é observar que nos últimos oito anos foram gerados 30% do estoque total de empregos formais existentes no país em 2008, segundo o mesmo registro administrativo – RAIS (MTE, 2009). Esta rápida evolução, além de refletir uma conjuntura econômica favorável do país no período em análise, cria a expectativa de que possa ser reduzida ainda mais a informalidade na relação empregatícia, elevando a proteção social daqueles trabalhadores.

No que tange à cobertura previdenciária[4] também se pode constatar avanços. Em 2003, somente 42,9% contribuíam para a Previdência Social, índice que alcançou 50,7% do total da população ocupada total no Brasil, em 2007 (IBGE, 2008). Em números absolutos, os contribuintes da previdência representaram 46,1 milhões de ocupados, em 2007, incluindo empregados, trabalhadores por conta própria e empregadores, sendo o aumento da formalização do emprego o fator que mais impulsionou o resultado.

O esforço brasileiro também pode ser mensurado através da adoção, em 2008, da Convenção 102 da OIT que estabelece parâmetros para a segurança social dos trabalhadores, entre eles os critérios para a concessão de benefícios previdenciários básicos como aposentadoria por idade e invalidez, auxílio-doença, salário-família e maternidade e pensão por morte (OIT, 1998). Como se pode perceber, a importância da decisão brasileira está circunscrita não somente aos compromissos ali sinalizados, mas, tem especial significado por ter sido tomada em um contexto econômico adverso. Foi a 81ª norma da OIT a ser ratificada pelo Brasil.

Outro indicador a ser destacado quando se aborda a questão da proteção ao trabalhador é a abrangência do seguro-desemprego, que é concedido principalmente ao trabalhador dispensado involuntariamente, com pelo menos seis meses de vínculo empregatício[5]. Observa-se um crescimento da concessão, variando de 4,9 milhões para 7 milhões de trabalhadores beneficiados anualmente, entre 2002 e 2008 (CODEFAT, 2009). Evolução esta que guarda proporção com o crescimento do número total de empregos celetistas, ou seja, quanto mais empregos formais, mais beneficiários do seguro-desemprego. O simples crescimento do número de segurados beneficiários não pode, contudo, ser apontado como um número a ser festejado sem que se faça ponderações, como veremos adiante neste texto, visto que reflete também uma grande flexibilidade no mercado de trabalho brasileiro.

Evidentemente, se há resultados positivos a festejar, vê-se um longo caminho a percorrer, sobretudo quando se sabe que os passos seguintes são mais difíceis, não se obtendo melhorias nos indicadores, no mesmo ritmo dos avanços anteriores.

Os desafios da política pública de trabalho no Brasil

Gerar mais empregos, ampliar o grau de formalização do emprego e a cobertura previdenciária, garantir a proteção do seguro desemprego, eliminar o trabalho infantil e o trabalho escravo, são desafios relevantes na agenda do trabalho. Ao mesmo tempo há outros aspectos que merecem atenção, a exemplo da ainda incipiente a política de promoção da equidade no trabalho, sobretudo quando se compara o desempenho entre sexos e etnias no mercado de trabalho, desfavorável às mulheres, negros e índios. O mercado de trabalho também se mostra restrito para as pessoas com deficiência (PCD) a despeito de toda a legislação que impõe cotas aos empregadores. Da mesma forma, os jovens, principalmente na busca do primeiro emprego, mas também as pessoas de idade mais avançada sofrem com índices mais elevados de desocupação. É indispensável, ainda, estimular as políticas já existentes que levam em consideração as diferenças entre o trabalho urbano e rural, garantindo, por conseguinte, tratamento diferenciado, que proteja as populações rurais, dando condições propícias de vida e produção, principalmente aos agricultores familiares.

Como se vê, embora não sejam características exclusivas do mercado de trabalho brasileiro, sendo comuns estas dificuldades em outras nações, há especificidades a considerar na busca da solução. Neste sentido, deve-se ter em conta não apenas o emprego formal, mas outras formas de ocupação no âmbito do empreendedorismo individual ou associado.

A política pública do trabalho no país só recentemente estimula ocupações através de empreendimentos coletivos, cooperativados, especialmente aqueles trabalhadores mais pobres, que têm dificuldade de acessar o mercado de trabalho, muitos dos quais beneficiários do Programa Bolsa Família. A criação de uma secretaria nacional de Economia Solidária, vinculada ao Ministério do Trabalho, representou um avanço, embora ainda faltem fundos consistentes para desenvolver suas políticas. A articulação entre as políticas de desenvolvimento social e do trabalho pode ser uma alternativa que propicie um enfrentamento adequado da questão.

Também o incremento ao microcrédito produtivo e o incentivo à formalização do empreendedor individual são políticas que conduzidas adequadamente poderão oferecer resultados que contribuam para a melhoria geral das condições do trabalho.

Criar mais empregos e empregos de qualidade depende, naturalmente, do crescimento da atividade econômica. Tornar formais os empregos informais é um passo importante para ter mais e melhores empregos, mas é preciso ir adiante. No Brasil esta temática tem sido associada ao debate sobre a normatização das relações de trabalho.

Em certos círculos acadêmicos, políticos e empresariais convencionou-se dizer que um dos entraves ao desenvolvimento brasileiro é o “alto custo do trabalho” imposto às empresas, através dos encargos trabalhistas supostamente elevados, o que exigiria, de acordo com estas concepções, uma “flexibilização das relações de trabalho”. Entretanto, este argumento carece de substância quando se analisa um pouco mais as características do mercado de trabalho. Diferentemente do que sustentam estas teses, é alta a rotatividade entre os empregados formais.

Sobre este aspecto, os dados obtidos no CAGED - Cadastro Geral de Empregados e Desempregados[6] do Ministério do Trabalho são reveladores. Este cadastro, que considera apenas os empregados regidos pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), aponta a existência de um contingente de 31,4 milhões de empregos ao final de 2009, fruto de um incremento em relação ao ano anterior de 995 mil empregos. Significa um acréscimo de 3,11% em apenas um ano. Ocorre, no entanto, que este saldo foi resultante de 16,2 milhões empregados admitidos e 15,2 milhões de desligados. Temos, então, que o equivalente a 50% do estoque total de empregados ao final daquele ano foi demitido! Um número espantoso, que permite concluir que há uma grande flexibilidade no mercado de trabalho brasileiro, contrariamente àqueles que consideram haver regras em demasia, excesso de regulamentação este que desencorajaria as contratações.

É claro que há variadas motivações para este comportamento dos empregadores e empregados, e em muitos casos o desligamento é decorrência de características sazonais de alguns setores econômicos. Mas estes casos não explicam o quadro aqui exposto, que guarda maior complexidade, impactando fortemente a eficiência e eficácia do gasto público, além, é claro, da insegurança gerada entre os trabalhadores. Outro impacto decorrente deste alto nível de demissões é a restrição do investimento privado na formação da mão-de-obra em razão da expectativa de desligamento dos seus empregados. Por tudo isto não se pode considerar aceitável o nível de demissões observado na economia brasileira.

Acrescente-se a isto o fato que dos 15,2 milhões de desligados, em 2008, nada menos que 8,8 milhões foram demitidos sem justa causa, reforçando a necessidade de retomada no Congresso Nacional da discussão para aprovação da Convenção 158 da OIT – que dispõe sobre a dispensa imotivada, e que deixou de vigorar no Brasil em 1997, revogada por decreto presidencial.

Simultaneamente, deve-se ressaltar ser fundamental o aprimoramento das políticas públicas de trabalho, e do sistema público de emprego, particularmente as ações de intermediação de mão de obra e de qualificação profissional. Ampliar as ações de qualificação propicia melhores resultados na intermediação e pode contribuir para uma maior permanência no emprego. No entanto, enquanto cresce o investimento na ampliação da rede federal de educação profissional, com cursos técnicos e superiores de tecnologia, há uma carência de recursos para qualificação profissional. Os cursos de curta duração voltados para responder a demandas imediatas do mercado de trabalho tiveram, ano após ano, as dotações reduzidas, situação que tende a se agravar, com as restrições orçamentárias do Fundo de Amparo ao Trabalhador - FAT. Criado para garantir o custeio do Programa do Seguro-Desemprego e do Abono Salarial, e o financiamento de Programas de Desenvolvimento Econômico, o FAT tem como principal fonte primária de receitas as contribuições para o Programa de Integração Social - PIS, e para o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público – PASEP. Os recursos do Fundo consomem mais e mais recursos com o pagamento do seguro-desemprego e do abono salarial anual, reduzindo os dispêndios com o sistema público de emprego, entre os quais figuram as verbas para a qualificação profissional.

A despeito destas e outras questões, objetivamente, o país vem alcançando metas importantes ao superar dificuldades históricas no seu mercado de trabalho, aumentando o número de novos postos de trabalho, ampliando do sistema de proteção social, e o respeito a normas internacionais do trabalho, com a adoção de novas Convenções da OIT. A existência de um ambiente político e institucional favorável tem propiciado o desenvolvimento do diálogo entre empregadores, empregados e governo.

Em um quadro econômico de incerteza, a perspectiva de avançar rapidamente nas conquistas sociais não se apresenta como a hipótese mais factível, entretanto, é razoável considerar que o fortalecimento da democracia no país passa necessariamente pelo enfrentamento de déficits sociais históricos. Cabe ao poder público fortalecer as instâncias de discussão e deliberação, permitindo o surgimento de soluções mais consistentes e duradouras.

Neste sentido, o Programa Nacional do Trabalho Decente criado a partir da Agenda Nacional reafirma as prioridades ali definidas.

Com efeito, no estabelecimento de estratégias de desenvolvimento com inclusão social ─ fundamental para a construção de uma sociedade mais justa – o crescimento econômico é condição necessária, mas não suficiente. Sua efetividade está condicionada à adoção de mecanismos que permitam melhor distribuição das riquezas e melhor qualidade das ocupações ofertadas. Setores produtivos e atividades que concentram a população mais vulnerável, como a agricultura e o trabalho doméstico, por exemplo, também devem ser espaços prioritários de ação.

Aderir à convocação global para o debate do Trabalho Decente é reconhecer o Trabalho como cerne do desenvolvimento e de inclusão social, é reconhecer o valor do Trabalho como aspecto central na nossa sociedade, é apresentar disposição para dirigir esforços a fim de consolidar as conquistas e mobilizar a sociedade para a busca de alternativas para esses desafios.

Agendas do Trabalho Decente - TD

O conceito de TD desenvolvido pela OIT desdobrou-se na formulação de Agendas, construídas em decorrência da identificação de prioridades com vistas à redução de déficits de TD. As Agendas são aplicáveis a um determinado território e deve estar pautada em quatro pilares: o respeito aos princípios e direitos fundamentais no trabalho, a geração de ocupações de qualidade, a ampliação da proteção social e a promoção do diálogo social.

Assim, os chefes de estado das Américas estabeleceram uma Agenda Hemisférica com metas específicas para o período de 2006/ 2015, tendo como objetivos: 1) a promoção e cumprimento das normas e os princípios fundamentais; 2) Criação de maiores oportunidades para mulheres e homens para que disponham de remuneração e empregos decentes; 3) Ampliação da abrangência e da eficácia da proteção social para todos; 4) o fortalecimento do tripartismo e o diálogo social.

Da mesma forma, em 2006, foi elaborada a Agenda Brasil, tendo como prioridades: 1) gerar mais e melhores empregos, com igualdade de oportunidades e de tratamento; 2) erradicar o trabalho escravo e eliminar o trabalho infantil, em especial em suas piores formas; 3) fortalecer os atores tripartites e o diálogo social como instrumento de governabilidade democrática.

A Bahia inova nesse campo ao lançar a primeira Agenda do Trabalho Decente[7] em nível subnacional no mundo, segundo constatação da OIT, que tem prestado apoio técnico a esse processo. Construída de forma participativa, em diálogo tripartite ampliado, envolvendo trabalhadores, empregadores, governo e sociedade civil organizada, a Agenda expressa compromissos prioritários quanto à erradicação do trabalho escravo e infantil, à segurança e saúde do(a) trabalhador(a), à juventude, ao trabalho no serviço público, à promoção da igualdade, ao trabalho doméstico e empregos verdes.

As Agendas subnacionais devem ser vistas numa perspectiva de articulação com a respectiva agenda nacional, como se pode concluir a partir da análise que se segue:

Uma Agenda do Trabalho Decente em âmbito subnacional traz um enfoque local à proposta de promoção do trabalho decente, favorecendo, pela proximidade e nível executivo dos atores, melhor operacionalização do projeto, em tese. Contudo, Agendas locais guardam uma limitação significativa, uma vez que políticas voltadas para o trabalho decente não podem prescindir de ações amplas, em nível nacional, algumas das quais são de competência exclusiva da União. O poder central que, em última instância, é o articulador das políticas macro econômicas, deve estar alinhado com as ações locais, e direcionado a maior crescimento econômico(DIAS SILVA e VASCONCELOS, 2008 p. 5).

O projeto do Estado da Bahia foi discutido no âmbito do Foro Consultivo de Cidades e Regiões – FCCR, do Mercosul, resultando na assinatura, em dezembro de 2008, de Termo de Compromisso visando estabelecer estratégias locais de desenvolvimento econômico e social, com sustentabilidade ambiental, que tenham como referência os eixos centrais da Agenda do Trabalho Decente. Firmado por vinte e sete cidades, províncias, municipalidades e estados do Brasil, Argentina e Paraguai, este documento marca o início de troca de experiências em práticas e metodologias de desenvolvimento destas iniciativas.

O Comitê Gestor do Programa baiano, integrado por 27 instituições públicas estaduais e federais, representativas de empregadores e empregados e sociedade, articula ações orientado por metas definidas para cada eixo prioritário. A realização da II Conferência Estadual do Trabalho Decente, a se realizar no primeiro semestre de 2010, precedida de seis Conferências regionais, contribuirá para a consolidação do Programa Estadual do Trabalho Decente, avaliando o cumprimento das metas e estabelecendo novos desafios.

Considerações Finais

O quadro mundial do mundo do trabalho nas ultimas décadas é de desemprego e subemprego persistentes e a Organização Internacional do Trabalho tem apresentado como única saída para a crise a implantação de programas baseados no Trabalho Decente.

Como se pode observar ao longo deste texto, a promoção do trabalho decente no Brasil implica em superar as peculiaridades do seu desenvolvimento, inerentes à condição de um país que tem grandes disparidades regionais e forte concentração de renda. Um país que precisa vencer limitações históricas para alcançar novos avanços econômicos e sociais. Situar-se adequadamente no quadro das grandes nações implica em promover um crescimento mais equitativo, com melhor condição de vida e trabalho para os brasileiros.

Ampliando as oportunidades de trabalho e a proteção social, o país se esforça para cumprir os seus compromissos com relação às Normas Internacionais, promovendo o Trabalho Decente e enfrentando as causas do trabalho degradante.

Estabelecido um conjunto de instituições, normas e políticas para a proteção do trabalho, o desafio é assegurar conquistas a crescentes contingentes de trabalhadores e avançar na incorporação de outros benefícios, com base em um crescimento econômico socialmente justo e sustentável.

A existência de um ambiente democrático, a consolidação de agremiações partidárias de cunho nacional, a existências de amplas liberdades políticas e de organização social, e eleições democráticas que propiciam a alternância de poder, representa um patrimônio indispensável à valorização do trabalho com promoção de práticas laborais as mais dignas.

A determinação pelo governo federal em estabelecer uma Agenda e um Programa Nacional do Trabalho Decente é de grande valia. Os resultados positivos já obtidos evidenciam o quanto a política pública pode ser bem sucedida, e estimula a adoção de estratégias semelhantes em outras áreas prioritárias.

O surgimento de Agendas em nível subnacional a partir da experiência da Bahia, em estados e municípios brasileiros, sinaliza a possibilidade de se desenvolver em maior abrangência os esforços de articular ações governamentais em diferentes níveis com vistas ao cumprimento dos objetivos norteados pela bandeira do Trabalho Decente, da OIT. Estas iniciativas demonstram que há possibilidade de se estabelecer prioridades ao nível local que complementem ações federais, com caráter inovador contribuindo para o alcance das metas nacionais.

A integração de aspectos da política pública de valorização do trabalho na América do Sul enriquece as experiências nacionais, particularmente aquela que se desenvolve no Brasil, objeto de discussão deste texto.

Bibliografia

Anuário Estatístico de Acidentes do Trabalho: AEAT 2008 / Ministério do Trabalho e Emprego ... [et al.]. Vol. 1 (2008). – Brasília : MTE : MPS, 2009. 888 p.

CODEFAT. Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador. Proposta Orçamentária do FAT para o exercício de 2010. Mimeo. Registros do Conselho, 2009.

DIAS SILVA, Tatiana; VASCONCELOS, Nilton. Trabalho Decente: uma Agenda para a Bahia. Anais do XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, realizado em Caxambu- MG – Brasil, de 29 de setembro a 03 de outubro de 2008. Disponível em: http://www.abep.nepo.unicamp.br/encontro2008/docsPDF/ABEP2008_1285.pdf

DIEESE. Anuário dos Trabalhadores. 2009. 10. ed. /DIEESE – São Paulo: DIEESE, 2009. 264 p.

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[1] 46,1 milhões de pessoas tem rendimentos referenciados no salário mínimo.

[2] O restante da população ocupada é formado pelos empregadores, trabalhadores por conta própria, não-remunerados e pelos que trabalham para o próprio consumo ou uso.

[3] A Relação Anual de Informações Sociais - RAIS é registro administrativo do Ministério do Trabalho e Emprego, divulgado anualmente, e que atinge aproximadamente 97% do mercado formal do país, incluindo os empregados no regime estatutário e da CLT – Consolidação das Leis Trabalhistas.

[4] Calculada como proporção das pessoas de 10 anos ou mais de idade, ocupadas na semana de referência, que contribuem para instituto de previdência social em qualquer trabalho (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios).

[5] O Seguro desemprego também é pago aos trabalhadores resgatados de condição análoga a trabalho escravo, aos empregados domésticos, ao pescador artesanal em período de defeso e na versão bolsa de qualificação. Observadas condições específicas para concessão do benefício em cada situação.

[6] O CAGED tem como função acompanhar e fiscalizar o processo de admissão e de dispensa de trabalhadores regidos pela CLT, sendo divulgado mensalmente.

[7] Para informações adicionais acessar o Portal do Trabalho Decente em http://www.setre.ba.gov.br/trabalhodecente/


* Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia – IFBA. Atualmente, é Secretário da Secretaria do Trabalho Emprego Renda e Esporte do Estado da Bahia - SETRE. Doutor em Administração Pública pela NPGA/Escola de Administração da UFBA.
** Este artigo é uma versão atualizada e revisada do trabalho apresentado no XIV Congreso del CLAD - Centro Latinoamericano de Administración para el Desarrollo

Publicado na Revista Bahia Análise & Dados, Salvador, v. 20, n. 1, p.89-108, abr./jun. 2010