07 dezembro, 2006

Processos Decisórios em Cooperativas Populares





Emanuele Freitas dos Santos – bolsista de IC/CEFET-BA
Michele Silva Araújo – bolsista de IC/CEFET-BA
Nilton Vasconcelos (CEFET-BA) – Professor Orientador






1. INTRODUÇÃO

Com o apoio do Estado e de organizações da sociedade civil, os empreendimentos solidários, entre os quais se destacam as cooperativas populares, têm se apresentado como uma alternativa ao desemprego e a precarização do trabalho, agregando às atividades produtivas valores como cooperação e autogestão.
Os avanços conquistados com a difusão dos estudos dedicados à economia solidária e ao cooperativismo popular permitem a identificação das peculiaridades da sua gestão, em especial, aquelas que apontam o seu caráter participativo nas decisões.
Nas cooperativas populares, um processo decisório em que prevalece a consulta coletiva é um diferencial que denota singularidade em relação às empresas tradicionais. Existem, porém, obstáculos que dificultam uma gestão democrática plena. O desinteresse entre cooperados, que não reconhecem o valor da sua própria contribuição, e a centralização de poder, que muitas vezes surgem como decorrência do desinteresse, podem contribuir para uma descaracterização da cooperativa e impedir o seu desenvolvimento interno e externo.
O presente trabalho objetivou identificar os principais fatores que influenciam o processo decisório das cooperativas populares e os mecanismos por elas utilizados para preservar os valores da solidariedade e da democracia interna. O procedimento adotado para identificar as características da prática democrática tomou como base as estruturas, rotinas e controles adotados pelo empreendimento. Nesse sentido, desenvolveu-se um estudo de caso, tendo como objeto empírico a Cooperativa de Coleta Seletiva, Processamento de Plástico e Proteção Ambiental – a CAMAPET, situada na Península de Itapagipe, Salvador, Bahia.
Para identificar os elementos que interferem nos processos decisórios e os mecanismos adotados para o desenvolvimento e manutenção da democracia em cooperativas populares, será apresentada a seguir uma breve revisão de literatura sobre o Cooperativismo Popular e a questão democrática. O detalhamento da metodologia, dos resultados do trabalho e das conclusões será objeto das demais seções deste texto.


2. ECONOMIA SOLIDÁRIA E COOPERATIVISMO POPULAR

A economia solidária advoga uma racionalidade econômica oposta àquela que orienta o modo de produção capitalista, priorizando a cooperação em detrimento da competição. Por este motivo, parte dos autores que se dedicam ao estudo da temática aponta a economia solidária como alternativa ao capitalismo. Singer (2002), mesmo considerando que “a economia solidária é outro modo de produção, cujos princípios básicos são a propriedade coletiva ou associada do capital e o direito à liberdade individual”, compreende haver uma co-existência dos modelos. Numa abordagem diferenciada, França Filho (2002) concebe a economia solidária como uma outra forma de regulação da sociedade que se articula com o Estado e com o mercado apesar de não estar subordinado a estes.
Souza Santos (2002) por sua vez, refere-se à economia solidária como sendo:

“[...] um modelo econômico que encontraria correspondências nas formas diversas de produção associativa em que se destacam as cooperativas e as mutualidades. Sendo que tais formas incluem desde organizações econômicas populares constituídas pelos setores mais marginalizados na periferia até cooperativas próprias”.

Efetivamente, a economia solidária surge no Brasil como uma alternativa de geração de renda com vistas à inclusão social. Os empreendimentos desenvolvidos a partir das influências deste campo de estudo e intervenção social são construídos na perspectiva da autogestão e da cooperação e se apresentam sob forma de grupos de produção, associações, clubes de troca, empresas autogestionárias e cooperativas populares. Estas iniciativas devem associar os objetivos de sustentabilidade econômica às ações de inclusão social e educação, com vistas ao fortalecimento e o desenvolvimento local. Assim, a economia solidária nada mais é do que um “[...] conjunto de atividades contribuindo para a democratização da economia a partir de engajamentos de cidadania” (FRANÇA FILHO e SILVA JÚNIOR, 2003).

Cooperativismo Popular

No âmbito da economia solidária os empreendimentos cooperativos são formados pelas camadas mais pobres da população, excluídos do mercado de trabalho, e fundamentam-se no interesse geral da comunidade em promover a pessoa humana e a integração social dos cidadãos.
O termo cooperativa popular tem origem na criação da ITCP - Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares – na UFRJ, em meados da década de noventa. Constituídas por professores, alunos e funcionários de instituições de ensino superior, as incubadoras têm como propósito a orientação para o cooperativismo, contribuindo para o desenvolvimento do empreendimento. O cooperativismo popular pressupõe a existência de entidades de apoio ou assessorias, sendo as ITCPs, que se proliferam em mais de trinta instituições universitárias do país, uma das expressões mais importantes. Cançado (2004) define a incubação como o “[...] processo temporário de apoio à cooperativa para que ela possa se organizar e depois se auto-sustentar, organizada de modo autogestionário”.
De acordo com Guimarães (2003), um dos fundadores da ITCP/UFRJ, a cooperativa popular é um instrumento de transformação social que deve apresentar retorno financeiro aliado a uma preocupação social. A inexistência de valores sociais pode fazer com que o empreendimento perca a sua singularidade enquanto organização coletiva. Para este autor discutir cooperativismo significa discutir educação, cidadania, tecnologia, políticas públicas e renda. O fortalecimento das cooperativas populares ocorre com a construção de objetivos comuns, decididos coletivamente.
Singer (2002) define cooperativa popular como sendo uma “[...] forma específica de expressão da economia solidária, baseada na posse coletiva dos meios de produção e na autogestão como forma de organização e trabalho”.
O cooperativismo popular, entretanto, não está restrito apenas à forma jurídica de cooperativa. Devido às restrições impostas pela legislação e aos custos inerentes à formação de uma cooperativa, alguns grupos têm optado por formar associações. Esta opção não descaracteriza o empreendimento, pois o que deve ser considerado são os valores do grupo e o respeito aos princípios da solidariedade e da cooperação.
As cooperativas populares são orientadas pelos princípios da Aliança Cooperativa Internacional e seguem as diretrizes da Carta de Princípios do Cooperativismo Popular, redigida em 1998. Esta carta de princípios revela a preocupação com a coletividade e com a igualdade entre os membros da cooperativa. A origem dos integrantes do empreendimento revela as condições atuais da sociedade onde predomina o desemprego e onde as pessoas não possuem recursos materiais para iniciar um empreendimento. O cooperativismo popular pressupõe a democracia em seus processos assim como requer um compromisso por parte dos associados com seus direitos e deveres.
Moura et alli (2004) ao analisar as especificidades da gestão de empreendimentos na economia solidária destaca as diversas racionalidades que orientam a atuação das organizações mercantis, estatais e as organizações da sociedade civil. As empresas mercantis possuem a lógica da competição e do utilitarismo e buscam o lucro máximo. Os organismos públicos estatais atuam segundo a lógica do assistencialismo, da redistribuição aos cidadãos com base na burocracia administrativa. Já as organizações que atuam no espaço da sociedade civil organizada são fundamentadas na ajuda mútua, na solidariedade e nas relações de proximidade sendo caracterizadas pela natureza associativa. Apesar destas organizações estarem relacionadas com instituições estatais e mercantis, as suas atuações não se assemelham àquelas do mercado ou do Estado.

2.1. Autogestão

O entendimento comum sobre as organizações, em geral as retratam como independentes e superiores às pessoas envolvidas no processo. Segundo esta abordagem, gerir pessoas é uma questão de organizar os indivíduos obedecendo a uma hierarquização que garanta o atendimento às demandas do empreendimento. Esta visão, porém, está sendo substituída por uma crescente percepção de que a interação entre os indivíduos constitui o próprio fenômeno organizacional (SATO e ESTEVES, 2002).
Este processo organizativo pressupõe uma gestão conjunta que, através de princípios democráticos, garante a participação de todos os associados nas decisões. Segundo Araújo e Moreira (2001): “A autogestão cooperativa e/ou associativa entendida como a gestão da organização pelos seus próprios sócios significa a passagem do poder decisório a todos os integrantes e a participação ativa do cidadão do poder”.
Dessa forma compreende-se que “[...]a autogestão surgiu como uma construção societária e teórica que visava a radicalização da democracia formal [...] por uma democracia real, permanente e cotidiana [...]”(SINGER, 1998) e que a “[...] a autogestão é um tipo de organização social capaz de levar à transformação e ao desenvolvimento regional” (DORNELES, 2004).
No meio acadêmico onde ocorre um estudo sistemático das organizações, percebe-se que conceber as “pessoas” como “recursos”, comparáveis a máquinas, é uma interpretação que vem sendo superada. Em seu lugar, surge uma visão do ser humano como o elemento mais importante da organização, que deve ser valorizado, desenvolvendo seu potencial.
A valorização dos indivíduos, porém, ainda não é uma prática na maioria das organizações, e a percepção da “organização” como sistema superior aos indivíduos não se limita às empresas capitalistas. Esta concepção persiste em outros modelos organizacionais, inclusive os de natureza social, pois se acredita que a burocratização, inerente à submissão das pessoas às demandas do empreendimento, minimiza a existência de conflitos. Os conflitos, portanto, não são considerados como parte da interação humana e por isso muitos grupos abdicam do diálogo e da busca do consenso (SATO e ESTEVES, 2002). As concepções baseadas na “eficácia organizacional” orientam esta minimização do potencial humano. Os trabalhadores, em especial os que não estão envolvidos no processo gerencial, internalizam estas noções acreditando que está estrutura não pode ser superada e que ela garante a sobrevivência da organização.
Sato e Esteves (2002), que fazem esta análise enfocando a autogestão em empresas autogestionárias, destacam, que é através dos processos cotidianos que as pessoas se apropriam da gestão e que não é apenas nas Assembléias ou reuniões periódicas que as pessoas constroem uma gestão democrática. Diariamente as pessoas negociam, debatem idéias, decidem, reavaliam outras decisões e organizam os rumos do empreendimento. Os autores chamam a atenção para a capacidade das pessoas de planejar e organizar atividades de suas vidas particulares, demonstrando que estas habilidades podem ser transferidas para o cotidiano da organização.
Araújo e Moreira (2001), adotando a sistematização de Bordenave (1983), analisam a participação em cooperativas e/ou associações de trabalho de acordo com as seguintes variáveis:
- nível da informação onde os integrantes são apenas informados sobre decisões já tomadas pela direção;
- consulta facultativa realizada pelos dirigentes para solucionar alguma questão;
- consulta obrigatória aos subordinados em ocasiões definidas;
- elaboração ou recomendação que são propostas dos cooperados que a direção aceita ou rejeita;
- co-gestão onde os cooperados influenciam diretamente a gestão através de órgãos colegiados;
- e a autogestão que é o maior nível de participação onde são eliminadas as diferenças entre administrador e administrado (BORDENAVE, 1983, apud ARAÚJO e MOREIRA, 2001).
Estas categorias definem de forma clara os níveis de participação em um empreendimento cooperativo e através destas pode-se analisar o estágio da democracia no grupo. Os integrantes de uma cooperativa popular precisam estar envolvidos nos processos, seja de maneira direta ou de representação. É relevante que os indivíduos não se abstenham do direito de gerir conjuntamente a cooperativa.
Nunes (2002) ao retratar a experiência comunitária realizada em um bairro de população pobre da cidade de Salvador apresenta uma definição sobre participação que se mostra válida para o presente estudo. Para a autora participar significa tomar parte em discussões e em decisões para a solução de problemas, uma atitude voluntária e contínua que pressupõe o conhecimento de rituais democráticos. Quando o grupo é desprovido desta habilidade deve ser preparado para este aprendizado.
Como já foi ressaltado, as cooperativas populares são constituídas por pessoas de baixa renda que devido à estrutura de trabalho “formal”, não reconhecem a democracia como mecanismo eficaz para a organização do grupo. Na prática da autogestão as discussões devem ser encaradas positivamente na tentativa de encontrar soluções para os problemas. As decisões devem vir do consenso grupal e o aprendizado da participação deve ocorrer no dia-a-dia.
Por isso mesmo, Singer (2002) afirma que o desinteresse dos sócios é o maior obstáculo à autogestão. As pessoas se recusam a assumir o esforço adicional das práticas democráticas – o esforço de se dedicarem a suas funções específicas e também de se preocuparem com o empreendimento de uma forma geral. Os sócios preferem delegar à direção da cooperativa o poder de decidir e não costumam questionar as soluções encontradas. O autor destaca que este problema é originário da pouca formação democrática das pessoas, mas considera que “a autogestão promete ser eficiente em tornar empresas solidárias, além de economicamente produtivas, centros de integração democráticos e igualitários (em termos), que é o que os sócios precisam” (SINGER, 2002).

2.2. Fatores que Influenciam no Processo Decisório

O exercício da autogestão é condicionado por diversos aspectos que podem interferir positiva ou negativamente para a participação dos indivíduos nas decisões. A seguir, serão discutidos alguns destes elementos que são destacados nos estudos sobre economia solidária e, posteriormente, serão comparados aos resultados obtidos com a pesquisa de campo, para saber se estes fatores influenciam no processo decisório da cooperativa estudada.
Nível de Escolaridade dos Cooperados - embora não seja considerado um fator de grande relevância, o nível de escolaridade dos membros influencia o nível de desenvolvimento de uma cooperativa popular. A pouca escolaridade dos componentes do empreendimento pode ser um empecilho à autonomia dos cooperados. A valorização da educação nas cooperativas populares contribui para o crescimento dos indivíduos participantes, além de permitir ao grupo a utilização adequada das informações que lhe são concedidas.
Estigmatização dos Pobres - A estigmatização da pobreza é um fator destacado por Nunes (2002), ressaltando que a noção de inferioridade atua sobre os pobres para segregá-los. Muitas vezes os pobres não associam a sua condição social à estrutura política e econômica em que vivem, por isso se conformam com a situação. Diversas tendências orientam o comportamento das pessoas que interiorizam este estigma, tais como a vitimização que leva à busca pela caridade e legitima o assistencialismo. A interiorização do estigma deprecia o indivíduo e gera desvalorização do seu grupo (NUNES, 2002), visão que prejudica a coesão do grupo e gera conflitos não-construtivos. Além disso, a estigmatização faz com que as pessoas se sintam minimizadas, incapazes de decidir diante de certas situações. Em especial, quando existe o apoio de profissionais especializados os indivíduos tendem a se achar incapazes não rara vezes, em função da sua baixa escolaridade. Estas pessoas precisam de capacitação para a decisão através do aprendizado constante sobre os valores do cooperativismo e também através da construção de uma visão crítica sobre a sociedade.
Liderança - As lideranças que se destacam na organização por capacidade de persuasão, pelas experiências de vida e acabam influenciando bastante os demais associados e assim os rumos do grupo, por isso mesmo o papel desempenhado pelo líder é decisivo para a democratização do processo decisório.
Em um empreendimento da economia solidária estas lideranças devem nortear os cooperados e ao mesmo tempo incentivar a participação dos indivíduos em todas as questões relevantes. O líder nas cooperativas populares deve mobilizar os esforços do grupo para o desenvolvimento individual e coletivo, priorizando os interesses coletivos diante de suas expectativas particulares.
Os dirigentes das cooperativas devem servir de exemplo para seus companheiros, auxiliá-los no desenvolvimento das atividades, promover uma comunicação interna eficiente. A liderança que concentra as decisões prejudica a coesão do grupo e o desenvolvimento do empreendimento (NUNES, 2002).
Tamanho do Empreendimento - Outra questão que influencia o processo decisório relaciona-se ao porte da organização, de forma que quanto maior o empreendimento mais forte é a tendência do mesmo deixar de seguir a autogestão. A lógica que direciona o mercado no qual as cooperativas populares irão disponibilizar seus produtos ou serviços se baseia na lucratividade e na competitividade. Por este motivo a prática da autogestão, que pressupõe o valor da cooperação, pode ser comprometida. Nas cooperativas menores é mais fácil promover uma gestão participativa, apesar de muitos empreendimentos pequenos sofrerem com o pouco engajamento de seus sócios. Já nas grandes cooperativas é forte a tendência de concentração do poder e de burocratização (ALMEIDA, 2002). Para que as cooperativas populares consigam associar o seu crescimento com a prática da autogestão as informações devem fluir de cima para baixo e as instruções de baixo para cima. Acima de tudo os sócios devem estar engajados na luta pelo sucesso do empreendimento seguindo os valores do cooperativismo (SINGER, 2002).
Dinâmica Organizacional - A dinâmica organizacional do ponto de vista das relações que se estabelecem entre os órgãos deliberativos também afeta as decisões dos cooperados. A estrutura das cooperativas deve ser adequada às necessidades de cada grupo e este tipo de hierarquização deve permitir o fluxo constante de informações para que todos tenham condições de opinar e decidir sobre os assuntos do empreendimento.
Araújo e Moreira (2001) definem assim a estrutura básica de uma cooperativa:
- Assembléia geral: órgão superior que permite a participação de todos os associados através do voto.
- Diretoria ou conselho administrativo: constituídos por cooperados eleitos, é responsável pela execução das propostas aprovadas em assembléia. Pode indicar uma diretoria executiva.
- Conselho Fiscal: que tem a função de fiscalizar o patrimônio da cooperativa
- Órgãos auxiliares: são as comissões ou núcleos que possuem funções especificas de acordo com as atividades da cooperativa.
Os valores do cooperativismo devem ser praticados no contexto destes órgãos, sendo que os cooperados possuem o direito e o dever de interferir nos processos e participar das decisões.
A assembléia é um dos mecanismos que permitem a consolidação da autogestão, porém a falta de participação em Assembléias tem sido destacada como um grande problema em cooperativas. Este fato deve ser discutido, pois não é apenas um problema interno, mas é uma reprodução dos valores da nossa sociedade que não incentiva o aprendizado da cidadania.
A análise conjunta da estrutura organizacional do empreendimento, do seu funcionamento e dos fatores que interferem nos processos de autogestão pode contribuir para a caracterização dos processos decisórios em cooperativas populares.
O quadro a seguir expõe elementos relevantes que devem ser considerados ao se avaliar os níveis de participação em cooperativas populares, de acordo com a sua estruturação estatutária básica. O atendimento ao maior número possível de comportamentos relacionados nos permite avaliar positivamente um empreendimento solidário do ponto de vista da democracia e da participação, portanto do grau de desenvolvimento da autogestão.

Figura 1: Quadro de análise - Processos Participativos em Cooperativas Populares

3. METODOLOGIA

Para desenvolver este trabalho, na fase exploratória foram realizados levantamentos em fontes secundárias buscando identificar experiências de gestão cooperativa, assim como construir um referencial teórico e o objeto de estudo.
O trabalho de campo implicou na observação informal da cooperativa estudada através de uma pesquisa descritiva que compreendeu visitas objetivando conhecer o cotidiano dos trabalhadores, o ambiente do empreendimento e a dinâmica do processo decisório da organização. Com este intuito foram realizadas entrevistas com cooperados e dirigentes da entidade de apoio à gestão, além da aplicação de questionários.
Um empreendimento característico da economia solidária, uma cooperativa popular localizada na Região Metropolitana de Salvador, foi selecionado: a Cooperativa de Coleta Seletiva, Processamento de Plástico e Proteção Ambiental – CAMAPET. Ao longo do período das visitas, foram obtidas informações necessárias a uma compreensão do processo de constituição da cooperativa e da escolha do ramo de atuação.
O contato sistêmico com os cooperados permitiu, sobretudo, a observação dos mecanismos de decisão e da atitude dos cooperados frente à gestão e às relações interpessoais, assim como do processo produtivo.
Após as entrevistas, foram aplicados os questionários para a obtenção de dados qualitativos e quantitativos junto à determinada amostra de cooperados, sendo elaborados com base no Quadro de Análise: Processos Participativos em Cooperativas populares (ver Figura 1). No início, da pesquisa e das observações com a CAMAPET, a cooperativa só contava com 14 cooperados. Desse universo, o questionário foi aplicado junto a 10 pessoas.


4. RESULTADOS

A CAMAPET - Cooperativa de Coleta Seletiva, Processamento de Plástico e Proteção Ambiental - é um empreendimento formado por adolescentes e jovens da comunidade de Alagados – Itapagipe, com idade entre 16 e 25 anos, e vem desenvolvendo um papel importante no resgate da auto-estima, na inclusão de jovens no mercado de trabalho; na geração de renda; e na mudança de comportamento e atitudes da população local com relação ao trato com resíduos sólidos.
A cooperativa tem esse nome em função da sua relação com o CAMA (Centro de Arte e Meio Ambiente), uma instituição sem fins lucrativos, que dissemina informações sobre ecologia e atua em movimentos sociais vinculados a preservação do meio ambiente. O foco inicial do empreendimento foi a coleta de garrafas PET, o que influenciou na definição da designação da cooperativa. O surgimento do grupo se deu em decorrência dos cursos desenvolvidos pelo CAMA, e da idéia de colocar em prática o conhecimento adquirido. Logo, a cooperativa começou a trabalhar com uma gama mais variada de materiais recicláveis. A CAMAPET incorpora nas suas atividades a realização de palestras sobre Educação Ambiental para a comunidade da Península de Itapagipe, que é a área de atuação da cooperativa.
Fundada em 1999, a CAMAPET de início contava com 30 associados. Cinco anos depois, apenas 2 dos 30 associados iniciais continuavam na cooperativa. A CAMAPET também atua na aquisição de material junto a catadores avulsos, mantendo quatro pontos de compra na Península de Itapagipe. Além disso, a cooperativa orienta a comunidade para que eles os ajudem separando os materiais recicláveis, que posteriormente sejam recolhidos em datas determinadas. A cooperativa mantém convênios com empresas diversas para o fornecimento de materiais descartados no seu processo produtivo e também com diversas escolas, igrejas, associações, condomínios.
O caminhão utilizado pela cooperativa para o transporte desses materiais até a sede é próprio, embora insuficiente para a quantidade de materiais a serem transportados, pois tem a capacidade de carga de apenas 3 toneladas. Ao chegarem no galpão da cooperativa - nas dependências de uma companhia ferroviária, os materiais são separados: latas, garrafas plásticas transparentes e coloridas, papelão, papel branco, papel colorido, cada qual em seu lugar. Depois são feitos fardos com cada tipo de material e são vendidos para empresas na Região Metropolitana de Salvador.
De acordo com os questionários aplicados a uma amostragem de 10 cooperados da CAMAPET, os cooperados já fazem parte da cooperativa há: 7 meses (1 cooperado), 8 meses (1 cooperado), 9 meses (1 cooperado),10 meses (1 cooperado), 1 ano (4 cooperados) e 6 anos (2 cooperados).
Pelos questionários foi possível observar que todos participam das assembléias que são realizadas quinzenalmente na cooperativa e demonstram estar informados do que ficou decidido na última Assembléia realizada.
Unanimemente, os cooperados se consideram bastante participativos com relação ao processo de tomada de decisões da cooperativa, sendo ativos na discussão e votação nas Assembléias. Concordam entre si que as opiniões ou sugestões emitidas pelos cooperados nas Assembléias são aceitas e discutidas pelos seus colegas e afirmam já terem apresentado propostas para melhorar o trabalho da cooperativa.
Quando foram questionados sobre a Diretoria, todos os cooperados disseram que ela é democrática, mas ao serem indagados sobre a atuação da mesma as repostas se dividiram: 6 dos 10 cooperados, acham que a Diretoria atual é melhor do que as anteriores; 3 acham a Diretoria um pouco confusa, mas sabem que ela tenta fazer o melhor possível; um entrevistado acha que ela é somente razoável.
Os cooperados demonstraram compreender que a Assembléia pode destituir a Diretoria em função de ato que contrarie as normas estabelecidas pelo Estatuto da cooperativa. Os entrevistados entendem que na hipótese de algum cooperado descumprir uma decisão o caso será levado pela Diretoria até a Assembléia e que os cooperados decidirão juntos se terá e qual será a punição tomada.
Segundo informaram, a contabilidade da cooperativa é discutida em Assembléia, porém, somente 6 dos cooperados já tomaram algum curso sobre contabilidade. Nove deles, entretanto, dizem entender e saber analisar o balancete de contabilidade da cooperativa. Ou seja, da amostragem analisada apenas um cooperado não tomou nenhum curso e nem sabe analisar as contas da cooperativa.
Neste processo foi possível acompanhar uma reunião da diretoria que discutia o resultado obtido com as vendas de latinhas de cerveja e garrafas de plástico coletados no Carnaval. Observou-se o interesse de todos em compreender todos os custos, despesas e lucros referentes ao processo, para que posteriormente o Balanço Patrimonial pudesse ser passado para os outros cooperados na próxima reunião geral.
Ao serem indagados sobre suas participações em reuniões ou eventos fora da CAMAPET a fim de representá-la, 7 dos 10 cooperados disseram já terem participado de algum evento e apenas três disseram que não, pois isso se restringe a Diretoria.
Dos cooperados que fizeram parte da amostragem, 7 afirmam querer fazer parte da Diretoria futuramente. Os motivos são os mais variados: para ganhar uma maior experiência; por já fazer parte dela e considerar que executa um bom trabalho; para se tornar mais responsável; e por ser um cargo importante. Dos 3 cooperados que não gostariam de fazer parte futuramente da Diretoria, 2 dizem não se interessar pelo cargo e 1, por já ter feito parte, afirma que é melhor outras pessoas também terem a oportunidade.
Ao responderem sobre a questão que diz respeito ao desempenho dos outros cooperados, 9 pessoas da amostragem acham que todos desempenham corretamente as funções que lhes são atribuídas, pois todos sabem que para o resultado do trabalho ser positivo é necessário a participação de todos os envolvidos no processo. Apenas um cooperado diz que às vezes alguns cooperados ficam conversando no horário de trabalho e que esquecem suas funções.
Assim, pode-se observar que a CAMAPET é bastante homogênea, democrática, que seus membros são participativos, e que alguns conflitos existem, mas que são resolvidos através do diálogo, não chegando a atrapalhar no desenvolvimento do trabalho da cooperativa. Também pôde ser observado que os membros da cooperativa demonstram saber a importância do papel que desempenham, tentando assim, fazer o melhor possível para ajudar no desenvolvimento da cooperativa.


5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a análise das respostas do questionário, das entrevistas e das observações feitas nas visitas ao empreendimento pode-se afirmar que a CAMAPET é uma cooperativa razoavelmente democrática e que sua autogestão é bastante desenvolvida.
Se “a autogestão é o que caracteriza a empresa solidária”, como afirma Singer (2002), a CAMAPET é caracterizada como uma cooperativa popular e conta com a colaboração de todos os envolvidos para a tomada de decisão.
Para que os conceitos da autogestão se tornem prática sistemática nas cooperativas é necessário que os integrantes do grupo participem ativamente de sua gestão, e esta tem sido uma das maiores dificuldades enfrentadas pelas cooperativas. Assim, o empreendimento deve ser destacado, visto que a maioria dos membros está sempre presente nas Assembléias, estão sempre opinando e participando das votações. Esses fatores permitem perceber a preocupação que o grupo tem com a coletividade, com o outro e com o futuro do empreendimento.
O exercício da autogestão é condicionado por diversos aspectos que podem interferir positiva ou negativamente para a participação dos indivíduos nas decisões e fatores como a estigmatização do pobre, nível de escolaridade, o papel do líder, o tamanho do empreendimento e a dinâmica organizacional, podem influenciar ou não no processo decisório de uma cooperativa. No caso do empreendimento estudado, alguns desses fatores puderam ser analisados e em sua maioria não influenciam negativamente a tomada de decisão dos cooperados.
Não foram observados indícios de que a estigmatização da pobreza prejudicasse o desenvolvimento da cooperativa, ainda que o estudo não tivesse feito uma investigação em profundidade deste aspecto. O grau de escolaridade, por ser elevado em relação à média da população; e não identificação de um líder “forte”, que cerceie a ação dos cooperados; são fatores contribuem para um perfil mais participativo. Sendo a CAMAPET um empreendimento de pequeno porte, a tendência de haver obstáculos a autogestão em função da complexidade da organização, não se aplica.
O fator dinâmica organizacional pôde ser melhor analisado e percebe-se que sua estrutura é adequada às necessidades do grupo, e a hierarquização permite o fluxo constante de informações para que todos tenham condições de opinar e decidir sobre os assuntos do empreendimento.
A análise da estrutura organizacional da CAMAPET e do seu funcionamento contribuiu para o entendimento do seu processo decisório, que conta com a participação e o interesse de todos os seus cooperados.
Com a participação nas decisões, o grupo aprende lições de cooperação, de solidariedade e de cidadania. Esta percepção permite que o grupo descubra que o sucesso do empreendimento pode ser demonstrado, não apenas pelos ganhos financeiros, mas também pelo fortalecimento do sentido de comunidade. A inclusão social passa pelo aprendizado da democracia no cotidiano das pessoas.
Diante da análise dos fatores anteriormente discutidos pode-se dizer que a prática da autogestão nas cooperativas populares envolve o crescimento das pessoas enquanto indivíduos e enquanto cidadãos. Fazer parte de um empreendimento solidário e se envolver verdadeiramente com a gestão é um aprendizado do qual o indivíduo não deve abdicar.
O grupo, buscando alternativas que permitam a participação efetiva dos cooperados na gestão, conscientiza a todos da importância de sua atuação no grupo, pois isto motiva os integrantes a permanecerem no empreendimento.
Neste particular, torna-se necessário aprofundar os estudos quanto aos fatores que contribuem para o afastamento/permanência dos cooperados. No caso específico, verificou-se uma expressiva renovação do quadro associativo não parece estar correlacionado com restrições importantes do processo de autogestão.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Sandra Mara Rommel de. Construindo Alternativas de geração de trabalho e renda: PRONINC – Programa Nacional de Incubadoras de Cooperativas Populares. Cadernos da Oficina Social, Centro de Tecnologia, Trabalho e Cidadania. Rio de Janeiro, 2002. Disponível em: . Acesso em: 14 nov. 2003.
ARAUJO, Maria; MOREIRA, Carlos. Gerenciamento de pessoas em uma associação de trabalho: Novas formas de participação? Organizações e Sociedade, Salvador, v. 8, n.22, p.75-90, set-dez, 2001.
BORDENAVE, Juan E. Dias. O que é participação. São Paulo : Brasiliense, 1983. 81p. (Coleção Primeiros Passos, 95).
CANÇADO, Airton C. Autogestão em Cooperativas Populares: os desafios da prática. 2004. 134 f. Dissertação (Mestrado em Administração) – Escola de Administração, Universidade Federal da Bahia, Salvador. 03 nov. 2004. Orientador: Prof. Dra. Suzana Moura.
DORNELES, Simone Bochi. Autogestão: uma alternativa para o desenvolvimento regional. [2004?]. Disponível em: <
http://www.urisantiago.br/nadri/artigos/texto%20simone.pdf>. Acesso em 10 abr. 2004.
FRANÇA FILHO, Genauto Carvalho de. Terceiro Setor, Economia Social, Economia Solidária e Economia Popular: traçando fronteiras conceituais. Bahia Análises & Dados, Salvador, SEI v.12, n.1, p. 9-19, jun. 2002.
______. Gestão Social: um conceito em construção. In: Colóquio Internacional sobre Poder Local, 9., 15-19 Jun. 2003, EAUFBA, Salvador: [s.n.], 2003.
FÓRUM DE DESENVOLVIMENTO DO COOPERATIVISMO POPULAR DO RIO DE JANEIRO. Carta de Princípios. Disponível em: Acesso em: 18 jun. 2004.
GUIMARÃES. Gonçalo. Cooperativismo Popular. In: Economia Solidária: Desafios para um novo tempo. Cadernos Fundação Luís Eduardo Magalhães. Salvador, n.5, 2003.
MOURA, Maria Suzana; SILVA JÚNIOR, Jeová T.; TEIXEIRA, Luiza; SILVA, Manuela Ramos da; MAGALHÃES, Ósia Alexandrina V. Especificidades da Gestão de Empreendimentos na Economia Solidária - Breve Estado da Arte sobre o Tema. In: ENCONTRO LATINO AMERICANO DE INVESTIGADORES DO COOPERATIVISMO, São Leopoldo, 2004.
NUNES, Débora. Pedagogia da Participação: trabalhando com comunidades. Tradução Ciro Sales. Salvador: UNESCO/Quarteto, 2002. 130p.
SATO, Leny; ESTEVES, Egeu. Autogestão: possibilidades e ambigüidades de um processo organizativo particular. São Paulo: ADS/CUT, 2002. 45p.
SINGER, Paul. Uma Utopia Militante: repensando o socialismo. São Paulo: Vozes, 1998. 182 p.
______. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002. Cap. I, Fundamentos, p.7-23.
SOUZA SANTOS, Boaventura. Produzir para Viver: os caminhos da produção não capitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. v.2.

11 novembro, 2006

ITCP: PESQUISA E AÇÃO EM COMUNIDADE

A Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares do CEFET-BA é uma atividade de extensão vinculada ao Curso de Graduação em Administração e apoiada pelo Programa Nacional de Incubadoras de Cooperativas Populares - Proninc, por intermédio da Fundação Banco do Brasil. Este programa é coordenado pelo Ministério do Trabalho e Emprego, através da Secretaria Nacional de Economia Solidária, e conta com o apoio da FINEP/MCT, SESU/MEC, Ministério da Saúde e Ministério do Desenvolvimento Social. O Proninc apóia incubadoras universitárias que se distribuem em aproximadamente 40 instituições de ensino superior – públicas, privadas e confessionais. Estas iniciativas estão agrupadas em torno de duas redes nacionais: a Unitrabalho e a Rede ITCPs. A Incubadora do CEFET-BA, a primeira do gênero na rede CEFET, iniciou as suas atividades em 2003/2004, como desdobramento da pesquisa coordenada pelo Núcleo de Estudos em Trabalho e Tecnologias de Gestão, especificamente através da Linha de Pesquisa “Gestão de Empreendimentos Solidários”. O entendimento da FINEP de que “o conhecimento aplicado aos métodos de gestão das incubadoras e das cooperativas populares é uma inovação social”, sendo objetivo da FINEP “apoiar a consolidação dessa nova metodologia de gestão de empreendimentos solidários” permitiu um impulso significativo para que a ação das incubadoras se tornasse possível. Assim, o desenvolvimento de uma metodologia de incubação se dá à medida que se experimentam ações de suporte às cooperativas populares. A Jornada Científica da ITCP, que se realiza pelo terceiro ano consecutivo, é a oportunidade de interação entre a pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos de Trabalho e Tecnologias de Gestão em articulação com a ITCP, e outros grupos de pesquisa ou incubadoras de universidades baianas, com a apresentação de relatórios parciais e finais. Atualmente estão em andamento duas pesquisas: “O cooperativismo popular e seu processo de incubação” e “Análise comparativa das metodologias de incubação da ITCP/CEFET-BA e EPADE”, esta última em associação com a Unifacs conta com o apoio da Fapesb. O cooperativismo popular e a economia solidária Dois conceitos preliminares são importantes ter em conta: cooperativismo popular e economia solidária. O primeiro deles extrapola os aspectos jurídico-formais, não se encontrando na legislação em vigor referência específica a esta modalidade de cooperativismo. Enquanto entes formais com finalidade econômica, as cooperativas populares não são distintas das cooperativas em geral, submetendo-se às mesmas regras. Efetivamente, o caráter popular destes empreendimentos resulta do perfil sócio-econômico-cultural dos integrantes destas organizações, constituídas, em geral, por pessoas que não tiveram inserção no mercado formal de trabalho principalmente em função da associação de fatores tais como escolaridade, idade, gênero e cor. A não correspondência entre este perfil e àquele preconizado a partir da regras do mercado capitalista resulta em obstáculos objetivos à inserção econômica destas pessoas. A constituição de empreendimentos coletivos com a finalidade de gerar ocupação e renda é a alternativa que tem se apresentado. Entretanto, inúmeras dificuldades são observadas. Um aspecto relevante no debate sobre metodologias de incubação reside exatamente na limitação do instrumental de gestão disponível que prioriza o paradigma baseado na competitividade, nas estratégias de baixo custo, na tecnologia aportada aos meios de produção, etc. As cooperativas populares caracterizam-se, ao contrário, por serem intensivas em força de trabalho, por apresentar necessidades de retorno econômico de curtíssimo prazo, indisponibilidade de capital para alavancar a produção, além da carência na estruturação de redes produtivas e de comercialização. A despeito dos enormes desafios, vários fatores têm contribuído para o crescimento destas iniciativas econômicas. De um lado, as baixas taxas de crescimento econômico não possibilitam a geração de empregos em volume suficiente para atender a demanda reprimida e as necessidades que se renovam em decorrência da dinâmica demográfica. Ao mesmo tempo, uma vertente crítica ao modelo capitalista vigente tem obtido crescente influência no sentido de propugnar a construção de uma “nova” economia, em bases distintas daquelas que prevalecem na economia de mercado; ou ainda, ao preconizar o estabelecimento de relações humanas, de produção e de consumo diferenciadas. Vale ressaltar também que a necessidade de superação das políticas de transferência de renda, cuja expressão maior é o Programa Bolsa Família, tem levado à análise de alternativas de inserção produtiva do contingente de 11 milhões de famílias beneficiadas. Entre estas possibilidades, ou “portas de saída” como é referida a problemática, está o empreendedorismo coletivo, a exemplo do cooperativismo popular. Naturalmente, estas vias de inclusão produtiva exigem medidas no âmbito da política macro-econômica. Sem desenvolvimento econômico, são restritas as perspectivas de equacionar problema social de tamanha envergadura. O cooperativismo popular enquanto manifestação particular da Economia Solidária – que abrange diferentes formas de inserção econômica – baseia-se na autogestão, na propriedade coletiva, em prática associativa que estimula a participação nos processos decisórios, na integração dos níveis gerencial e produtivo, na articulação da produção e do consumo, e na cooperação. Observa-se assim uma multiplicidade de abordagens, avançando para além do econômico. Por isso mesmo, os benefícios não-financeiros são inestimáveis. Estes ganhos se concretizam na valorização/empoderamento dos indivíduos em decorrência da ampliação do seu horizonte cultural e educativo; dos avanços na constituição de fóruns voltados para o estabelecimento de plataformas de ação coletiva; das relações sociais advindas da articulação com demais organizações, sejam elas empreendimentos solidários ou entidades de apoio; ou na busca da capacitação técnica e da melhoria do nível de escolaridade. Estes benefícios contribuem para a sustentabilidade dos grupos, alimentando a perspectiva de resultados econômicos para as pessoas envolvidas e comunidade. No biênio 2005/2006 a ITCP/CEFET-BA implementa a incubação de cinco grupos, todos localizados em Salvador – dois dos quais já constituídos na forma jurídica de cooperativa e três outros vinculados a associações comunitárias, encontrando-se em estágios diferenciados de desenvolvimento. Atuam ou pretendem atuar nos segmentos de confecção, alimentos, produção cultural, produtos e higiene e limpeza. O processo de incubação realiza-se em três grandes fases. A primeira etapa envolve o fortalecimento dos vínculos dos membros do grupo, a promoção de cursos e treinamentos, a realização de estudos de viabilidade econômica. A legalização do empreendimento, a identificação de parceiros, a captação de recursos, o desenvolvimento de produto e processo produtivo, a estruturação da atividade de comercialização, o aprimoramento de instrumentos de planejamento e controle, entre outras, são atividades típicas da incubação. Por fim, a terceira fase corresponde ao estágio final do processo de acompanhamento,em que o grupo já deve ter adquirido condições para alcançar a sustentabilidade. O reconhecimento do MEC à atividade da ITCP se deu através da Secretaria de Educação Superior (SESU/DEPEM), materializado na aprovação, no âmbito do PROEXT 2005 e PROEXT 2006, de recursos para desenvolvimento do Programa de Extensão Solidária do CEFET-BA, o que inclui o suporte ao processo de incubação e a sensibilização da comunidade para o cooperativismo e economia solidária.

22 setembro, 2006

Motivações e Sobrevivência em Empreendimentos Solidários









III Encontro Internacional de Economia Solidária Trabalho na sociedade contemporânea

Motivações e Sobrevivência em Empreendimentos Solidários

Trabalho na Sociedade Contemporânea

Gleide L. de Souza(bolsista IC); Nilton Vasconcelos (professor pesquisador) - Centro Federal de Educação Tecnológica da Bahia (CEFET-BA)

Resumo

Este artigo aborda os desafios enfrentados por empreendimentos pertencentes ao campo da Economia Solidária para se manterem em funcionamento; bem como os fatores e motivações que permitem que seus membros os sustentem apesar de tais obstáculos. São considerados ainda alguns mecanismos de sobrevivência destes grupos associativos. A análise aqui proposta sedimenta-se em um estudo realizado em seis organizações integradas por trabalhadores de baixa renda, em sua maioria mulheres, moradoras de bairros populares da cidade de Salvador. Identificou-se inicialmente as dificuldades encontradas, que incluem a falta ou escassez de geração de renda e os obstáculos da gestão coletiva e domínio de técnicas gerenciais. Posteriormente, constatou-se aspectos que favorecem a permanência dos membros nos grupos; motivações que os animam a persistir, destacando-se os ganhos humanos e sociais; e meios encontrados pelas iniciativas para se manterem.

Palavras-Chave: Economia Solidária, Empreendimentos Solidários, Gestão, Motivação.

1. Introdução

Amplia-se cada vez mais no cenário brasileiro e mundial a discussão sobre um novo tipo de economia, fundamentada em princípios tais como a solidariedade e reciprocidade. Posta como uma alternativa de ocupação e geração de renda para trabalhadores excluídos do mercado de trabalho – para alguns, ela pode inclusive vir a substituir o modelo capitalista em vigor - a Economia Solidária abarca dentro de si diversos tipos de iniciativas, a exemplo de clubes de troca, projetos econômicos comunitários, cooperativas de crédito, de consumo e de habitação, e empreendimentos solidários, tais como empresas autogestionárias, cooperativas populares e associações. Considerando-se especificamente os empreendimentos, observa-se que estes são constituídos por pessoas de camadas humildes da sociedade que buscam uma alternativa de ocupação econômica; e objetivam a produção e comercialização coletiva regida pelos princípios desta economia.

O crescente número de iniciativas solidárias e o relativo êxito que algumas delas vêm obtendo mostram que é possível exercer uma atividade produtiva sob uma nova concepção, a de deter e gerir coletivamente os meios de produção. Ao mesmo tempo, nota-se que é um grande desafio para pessoas de origem popular romper o paradigma de exclusivamente receber e obedecer ordens, enraizado há muitos anos na sociedade do Capitalismo.

São muitos os vetores desfavoráveis à detenção dos meios de produção por tais pessoas, conforme será apontado adiante. Muitos empreendimentos parecem inviáveis economicamente, mas apesar disso se mantém em funcionamento, certos destes há considerável tempo. Esta constatação instiga o interesse em desvendar os fatores que resultam na permanência destas organizações.

2. Problema de Pesquisa e Objetivo

Este artigo visa apresentar os resultados da pesquisa “Empreendimentos Solidários: desafios e sobrevivência. A pesquisa se propôs a responder a seguinte problemática: quais fatores contribuem para que os empreendimentos populares permaneçam ativos, apesar das dificuldades enfrentadas em sua gestão?

O estudo foi desenvolvido com o intuito de detectar aspectos que favorecem a sobrevivência das iniciativas solidárias, apesar das diversas forças contrárias à sua permanência; mecanismos de sobrevivência nelas encontrados; bem como motivações que levam seus membros continuarem a mantê-las.

Entender a permanência dos grupos solidários pressupõe a compreensão de que estes obedecem a uma lógica distinta das que regem outros tipos de organizações, e diferem também destas quanto à sua finalidade. Observando-se esta afirmativa, realizou-se uma revisão de literatura acerca das particularidades da Economia Solidária e dos empreendimentos que dela fazem parte, identificando-se também as dificuldades observadas em grupos solidários, por diversos autores em estudos de caso, e ainda hipóteses por estes esboçadas para a solução do problema proposto. Este levantamento bibliográfico será apresentado, de forma sintética, a seguir.

3. Revisão de Literatura

Considerações sobre Economia Solidária

Engloba-se na Economia Solidária diversificadas vertentes de atuação que, em linhas gerais, defendem a manutenção da vida e o bem estar coletivo. Assim, são encontradas correntes que defendem a produção e comercialização agrícola responsável; a não destruição do solo e garantia das propriedades nutricionais dos alimentos; a preservação dos recursos naturais e do meio ambiente; o acesso a uma boa educação para todos; o consumo responsável e o uso de softwares livres. Tais correntes não se manifestam de forma isolada, mas são interligadas e comunicantes. Na sua dimensão econômica, a Economia Solidária combina economia e solidariedade, conceitos vistos como antagônicos que, juntos, expressam ajuda mútua, união para produzir, junção com o outro para busca da sobrevivência. Neste campo, a cooperação é diretamente o princípio organizador da economia.

Embora recente – desenvolve-se a partir da década de 1980 no mundo, e da década de 1990 no Brasil – este não se trata de um movimento novo. Possui raízes no antigo cooperativismo, fundamentado na filosofia de pensadores utópicos como Robert Owen e Charles Fourier, que aflorou por ocasião da Revolução Industrial, no Século XIX, um período de crise para os trabalhadores semelhante à que ocorre na contemporaneidade. Milhares de trabalhadores, naquela época, perderam seus empregos ao serem substituídos pelas máquinas, assim como hoje estão desempregados ou subempregados devido ao advento de novas tecnologias, que requerem cada vez menos trabalho humano, e à reconfiguração da ordem econômica capitalista (SINGER,1999).

No Brasil, os efeitos negativos das tendências mundiais se somam à herança de exclusão e desigualdades que vêm do passado. Com a abertura da economia brasileira e a conseqüente crise no mercado do trabalho, surge um “novo cooperativismo” – terminologia adotada por Singer, dentre outros autores – que abrange empresas autogestionárias, projetos comunitários e cooperativas populares. Singer (2002) aponta a cooperativa de produção (cooperativas populares) como protótipo de empresa solidária. Tais cooperativas, assim como outros empreendimentos solidários, são iniciativas populares que priorizam os valores de solidariedade e a formação educacional e cidadã dos seus membros.

Nos empreendimentos solidários, o processo de produção satisfaz principalmente as necessidades dos envolvidos na atividade produtiva de se manterem ocupados economicamente; de se sentirem inclusos na sociedade; de se relacionarem com os outros membros do empreendimento; e de obterem sustento. A lógica destas iniciativas, distinta e mais complexa do que a lógica que rege as empresas capitalistas, caracteriza-se como a “lógica da necessidade”, cuja finalidade é a geração de renda e postos de trabalho.

Desafios dos Empreendimentos Solidários

Os empreendimentos populares enfrentam grandes desafios para garantir a sua sobrevivência. Alguns pesquisadores (MOURA e MEIRA, 2002; NASCIUTTI, 2004; NUNES, 2002; BARROS, 2003) citam, dentre outros: 1) a não geração de excedentes para seus membros, que buscam renda para o sustento familiar; 2) dificuldades na contabilidade, destacando-se a falta de controle eficiente do fluxo de entrada e saída de recursos financeiros e materiais; 3) a rotatividade dos membros devido à demora nos resultados (geração de excedentes) e à atração ainda existente pela “segurança” da carteira assinada oferecida pelo emprego formal; 4) a falta de controle de qualidade dos produtos; 5) dificuldades no processo produtivo e na comercialização dos produtos; 6) a dependência gerada pela ajuda externa; e 7) dificuldades relacionadas ao processo de tomada de decisões, por ser difícil, para pessoas acostumadas apenas a obedecer, romper a barreira entre o trabalho braçal e o intelectual.

Destaca-se aí o fato de que muitos empreendimentos esparsamente geram excedentes suficientes para manter-se e para remunerar seus membros. Assim, funcionam de maneira precária. Frigotto (1999) menciona que a grande dificuldade dos grupos solidários é “[...] encontrar o caminho que viabilize essa proposta sem ser um trabalho de miséria, mas um trabalho que dignifique e que permita ganhar a vida com um nível mínimo de dignidade” (FRIGOTTO, 1999, p. 107).

Almeida (2002) aponta que é imperativa a necessidade de interação entre as organizações solidárias e as empresas capitalistas formais. Para ela, esta necessidade representa um desafio para tais iniciativas, pois enfrentam dificuldades para inserir seus produtos no mercado formal. Apesar de se constituírem outra lógica de produção e finalidade, não há para elas um mercado alternativo, regido pelos princípios e valores solidários. A autora encara o contato com o mercado formal como um mal necessário.

Do ponto de vista estritamente econômico, muitos destes empreendimentos estariam condenados à falência. No entanto, apesar das dificuldades, eles sobrevivem, alguns já por anos. A literatura aponta como provável explicação para este fato a existência de outros ganhos, não-financeiros, tais como o aumento da auto-estima; conhecimento adquirido; a conscientização dos direitos cidadãos; a ampliação da visão de mundo; e o prazer derivado do trabalho em grupo. Tais ganhos assumem tamanha importância para os membros dos empreendimentos que os levam a permanecer nas iniciativas.

Moura e Meira (2002) observaram, ao realizarem uma pesquisa em uma cooperativa popular, que os seus membros valorizavam a possibilidade de ocupação econômica fornecida pelo empreendimento, e encaravam o trabalho coletivo como mais estimulante e mais agradável. Já Barros (2003) cita a presença, em uma outra iniciativa por ele estudada, elementos como a “[...] auto-estima, a identificação com o trabalho e com o grupo produtivo, o companheirismo, além de uma noção crescente de autonomia e cidadania [...]”.

Além disso, grande parte dos empreendimentos solidários não se mantém sozinhos, dependendo em grande parte do apoio financeiro e assessoria de entidades de apoio, empresas, governo, organizações não-governamentais e entidades internacionais de financiamento de projetos populares. Levando-se em conta o exposto, desenvolveu-se o estudo de caso descrito adiante.

4. Metodologia Adotada

Com o intuito de detectar aspectos que favorecem a sobrevivência das iniciativas solidárias, apesar das diversas forças contrárias a sua permanência; e analisar as soluções que os grupos adotaram para superar seus problemas, desenvolveu-se uma pesquisa de campo em seis empreendimentos solidários da cidade de Salvador. Inicialmente buscou-se comprovar a existência de problemas de gestão nos grupos pesquisados, bem como se identificar quais seriam estes. A constatação e a identificação desses problemas não só legitima o questionamento do problema de pesquisa como tem ainda o papel de auxiliar a busca dos fatores que levam à sobrevivência das cooperativas e das soluções encontradas.

Para conduzir o estudo, foi adotada uma pesquisa do tipo exploratória qualitativa descritiva, a partir de visitas aos empreendimentos escolhidos e entrevista com seus assessores, adotando-se como ferramenta um questionário, para detectar as dificuldades, e dois roteiros de entrevista (um direcionado aos membros dos grupos, e outro voltado para os técnicos), com a finalidade de aferir os fatores que levam os grupos a permanecerem ativos. Definiu-se como amostra o número de cinco pessoas por empreendimento, dentro de um universo que variou entre seis e cinqüenta e sete pessoas. Por ocasião das visitas, realizou-se ainda a observação direta dos processos produtivos e práticas de gestão.

Os grupos selecionados para compor o objeto de pesquisa foram escolhidos levando-se em conta o tempo de existência; a distinção da origem social dos associados; a facilidade de acesso a informações referentes à cooperativa; e o fato de pertencerem a comunidades populares e serem formados por pessoas de baixa renda. Os empreendimentos pertencem a comunidades distintas e são assessorados por entidades que utilizam variadas metodologias de apoio técnico.

5. Perfil dos Empreendimentos Pesquisados

Para melhor compreensão dos resultados da pesquisa, se faz necessária a apresentação de um breve perfil de cada organização estudada. Neste perfil se inclui as dificuldades específicas observadas em cada grupo.

Coopertane

A Coopertane, fundada no ano de 2000, se ocupa da reciclagem de papel e produção de artefatos, tais como cartões, caixas e porta-retratos. Os membros são na sua totalidade mulheres, e este empreendimento funciona no porão da casa de uma delas. A formação deste grupo foi fomentada por uma Incubadora de Cooperativas, que lhe forneceu ainda cursos de capacitação e apoio na captação de recursos financeiros e materiais. Ultimamente, porém, segundo constatado nas entrevistas com as cooperadas e com a assessoria, não tem havido contato entre a cooperativa e a incubadora, ou alguma forma de apoio por parte dos técnicos. O grupo passou a desenvolver relações com outras entidades que auxiliam a gestão da cooperativa e concede esparsamente ajuda financeira. A iniciativa ainda não foi legalizada, e não recebe financiamento governamental ou privado.

O empreendimento não gera excedentes para serem distribuídos entre os cooperados. O resultado financeiro obtido é empregado para saldar despesas da iniciativa. No período, há apenas seis membros no grupo, o que desestimula o grupo e põe em risco o funcionamento do empreendimento. Entre os desafios enfrentados, aponta-se a dificuldade em padronizar e manter a qualidade dos produtos; e a falta de estrutura da sede da cooperativa.

Uniarte

A Uniarte, cooperativa fomentada pela Prefeitura de Salvador, produz e comercializa tapetes de borracha. Constituída e legalizada no ano de 2002, está localizada em um galpão cedido pela Prefeitura, que, além disso, doou o maquinário, fornece transporte dos produtos para feiras e exposições e assume o custo do fornecimento da água e energia elétrica. Inicialmente, esta fornecia recursos financeiros e materiais, os quais foram suspensos posteriormente. Vinte e três pessoas constituíram a cooperativa, mas apenas treze permanecem. Seus membros obtêm excedentes, embora escassos e irregulares.

Amevf

A Associação de Mulheres foi fundada no ano de 2001 com o objetivo de exercer um papel social dentro da comunidade na qual está inserida, principalmente no que diz respeito à promoção da valorização e profissionalização das mulheres. Exerce este papel, embora não da maneira desejada, através da realização de palestras e campanhas de saúde, ministradas pelas próprias associadas. Sua atividade econômica inclui a confecção e comercialização dos mais variados tipos de produtos artesanais e o atendimento a encomendas de doces e salgados. Não são assessoradas por uma entidade de apoio e tampouco contam com auxílio financeiro, mas eventualmente recebem auxílio material e acompanhamento de uma universidade.

Em média, a associação possui dez membros atuantes, porém este número oscila frequentemente. Há excedentes de maneira bastante precária, suficiente apenas para pagar alguns custos e despesas – muito raramente estes reembolsam o trabalho produtivo das sócias. Conta-se como dificuldades específicas o mix de produtos bastante amplo, prejudicando a continuidade da oferta e a manutenção da qualidade; e a falta de estrutura do local onde funciona a associação.

Artemãos

A Artemãos, cooperativa que produz bonecas de pano afro descendentes, se originou de um grupo de mulheres que tomavam cursos de artesanato promovidos pela ONG Vida Brasil. Em 2003, decidiram montar uma cooperativa, que no ano seguinte foi legalizada. A Vida Brasil, com o financiamento de uma entidade internacional, fornece apoio técnico, administrativo, financeiro, e de captação de recursos. Atualmente, conta com vinte e um membros.

O grupo não obtém renda da cooperativa, pois os excedentes obtidos com a venda dos produtos são utilizados para saldar pequenas despesas ou depositados em um fundo de reservas. São alguns obstáculos enfrentados no empreendimento: falhas de comunicação no grupo, conflitos freqüentes, falta de estoque, e dificuldades em cumprir o prazo da entrega de encomendas, pois os membros se ausentam bastante do trabalho.

Coopertextil

O grupo que deu origem à Coopertextil era formado por mulheres e portadores de necessidades especiais, oriundos de diversas comunidades carentes de Salvador, que participaram de uma oficina de tecelagem manual, mantida pela Prefeitura. No ano de 2004, formaram a cooperativa. A Prefeitura auxiliou o grupo na formação, legalização do empreendimento, aluguel de espaço para funcionamento, e inicialmente na captação de recursos financeiros e materiais. Com a mudança de grupo político na gestão, contudo, os cooperados afirmam que este apoio diminuiu muito.

Atualmente, há nove cooperados e dez alunos que recebem capacitação profissional em tecelagem, considerados na prática membros do grupo. A Cooperativa recebe atualmente recursos financeiros de um órgão do estado da Bahia. Aponta-se nela dificuldades em se manter regular a sua documentação, o que resultou inclusive na apreensão de uma carga de matéria-prima adquirida pelo grupo, e constantes conflitos entre os seus membros.

Caec

A Caec é tida como referência entre as cooperativas populares de Salvador, devido ao seu êxito em gerar um considerável excedente aos seus membros mensalmente; pelo seu porte; por possuir uma sede ampla e própria; e pela profissionalização das atividades produtivas e de gestão. O grupo é formado por antigos catadores do aterro sanitário de Canabrava, que montaram a cooperativa em 2002, fomentados pela ONG Pangea. Esta forneceu cursos de reciclagem, meio ambiente e cooperativismo, e atualmente presta assessoria técnica e administrativa ao grupo, atuando ainda na divulgação do empreendimento, relacionamento com clientes, captação de recursos e apoio de organizações privadas e públicas. A cooperativa funciona em horário integral, e trabalha com a coleta e comercialização de resíduos sólidos recicláveis, coletados em mais de cem pontos da cidade. Seus membros obtêm dela pouco mais de um salário mínimo.

Embora não mencionada nas entrevistas, observou-se na literatura o fato de que a Limpurb, órgão responsável pela limpeza urbana de Salvador, impõe obstáculos à Caec, a exemplo de delimitação de território e apreensão de material coletado, pois a cooperativa criada pelo órgão (Coopcicla) é a responsável pela coleta seletiva em Salvador. Assim, outras cooperativas são vistas como concorrência. Durante o estudo, notou-se que a renda gerada pelo empreendimento, embora expressiva, ainda não é suficiente para seus membros.

6. Análise dos Resultados

Na primeira parte da pesquisa de campo, detectou-se diversos problemas de gestão nos grupos pesquisados, confirmando o pressuposto da pesquisa. Algumas dificuldades específicas foram pontuadas acima; no entanto observou-se desafios comuns aos grupos. Deve-se ressaltar, contudo, que mesmo esses desafios semelhantes se apresentam em grau diferenciado, e em alguns grupos mais desenvolvidos economicamente, como a Caec, diversos deles não são encontrados.

A comercialização é o principal obstáculo nos grupos estudados, excetuando-se a Caec.. Esta tem sido a principal carência dos empreendimentos solidários, que se vêem num dilema: competir com grandes empresas no mercado formal ou empenhar grande esforço e tempo na criação de um novo espaço solidário para inserir seus produtos e serviços. Sanando-se esta dificuldade, outros problemas também seriam solucionados, tais como a escassez de excedentes.

Um aspecto a ser destacado, dentre as dificuldades observadas, é que poucos associados internalizam a condição de proprietários dos empreendimentos e não raras vezes os cooperados deixam de participar cotidianamente das atividades de gestão e do processo decisório. Em muitos casos, sequer procuram estar atualizados sobre o que se passa no grupo, conservando ainda uma cultura de transferir a responsabilidade para os diretores ou líderes. Alguns entrevistados não souberam informar, por exemplo, como é feita a prestação de contas. Em todas as iniciativas encontrou-se um pequeno grupo que toma a frente do empreendimento, que “empurra” os demais. Estas observações depõem negativamente para a caracterização destes grupos como integrantes da Economia Solidária visto que a autogestão é um dos princípios fundamentais a ser observado.

Na segunda etapa do trabalho, foram encontradas soluções para a problemática proposta. Em geral, os membros que permanecem vinculados aos grupos estiveram presentes na formação dos empreendimentos. Observou-se como resultados fatores exógenos que influenciam na sobrevivência das organizações; e dois mecanismos de sobrevivência encontrados neste tipo de iniciativa.

Fatores que Influenciam na Sobrevivência

Em geral, os membros que permanecem vinculados aos grupos estão neles desde a sua formação. Observou-se como resultados fatores externos que contribuem para que as pessoas permaneçam nos empreendimentos e outros que as motivam a se manter neles.

a) Fatores favoráveis à permanência

Os fatores favoráveis à permanência dos empreendimentos influem mais efetivamente nos empreendimentos que não geram renda para os seus membros (ou o fazem de maneira escassa), já que no caso do único grupo que obtém um rendimento regular e significativo, a Caec, o resultado financeiro obtido, embora não plenamente satisfatório, é um dos principais fatores responsáveis por manter as pessoas na iniciativa. É importante apontar que tais fatores são externos e agem independentemente da vontade dos membros, influenciando a retenção deles no empreendimento. São alguns destes fatores:

- Falta de perspectivas futuras: A ampla maioria dos membros dos grupos são mulheres com idade acima de quarenta anos, pouca escolaridade, de classe econômica baixa e/ou sem formação profissional. Com este perfil, tais pessoas dificilmente obteriam um emprego formal ou teriam condições de investir em uma atividade produtiva individualmente. Diante deste quadro, a única alternativa que estes encontram é insistir, esperando melhorias nas condições de vida.

- Outras fontes de renda: Excetuando-se a Caec, em nenhum dos empreendimentos os seus membros dependem exclusivamente da sua geração de renda. Quando há rendimentos, estes complementam o orçamento familiar. Constatou-se que as pessoas se mantêm com bolsas-auxílio concedidas pelo Governo, aposentadorias, contam com a renda de algum parente próximo, pensões de ex-marido e/ou exercem outra atividade econômica (informal) além do trabalho no empreendimento solidário. Mesmo na Caec, três das cinco pessoas entrevistadas possuem outras fontes de renda, mas neste caso a situação é inversa: estas são um complemento dos excedentes retirados do empreendimento.

b) Motivações

Em relação aos aspectos motivadores dos membros, estes podem ser encontrados em todos os grupos; porém, semelhante aos fatores que favorecem a permanência, ganham maior proeminência naqueles em que os rendimentos são precários. Tais motivações animam as pessoas a continuarem mantendo seus empreendimentos, apesar dos diversos desafios. São alguns deles:

- Expectativa de que o empreendimento venha a ter sucesso: O conceito de sucesso, para os membros dos empreendimentos pesquisados, não é meramente a obtenção ou ampliação da renda, motivação abordada anteriormente, mas engloba ainda o crescimento da cooperativa ou associação e expansão de suas atividades. Neste sentido, seriam incorporados novos membros – fato que estimularia os membros antigos, originaria mais postos de trabalho para absorver pessoas com necessidade de renda e atrairia a atenção da sociedade para os grupos, resultando isso em maior viabilidade e projeção aos empreendimentos e ao reconhecimento dos esforços empregados pelos seus membros, apesar das dificuldades.

Na Caec, cooperativa que é tida como exemplo deste “sucesso”, encontrou-se o sentimento de satisfação descrito acima entre os seus membros. Nesta fase, há agora a expectativa de se atingir mais uma etapa: segundo uma das pessoas entrevistadas, os membros desejam ser “uma grande referência, a melhor cooperativa da Bahia”.

- Abertura de novos horizontes: A participação nos empreendimentos trouxe para alguns dos seus membros novas experiências, ampliação da visão da sociedade e do seu papel enquanto cidadãos, o desejo de estabelecerem novas metas para as suas vidas e outros ganhos relacionados à vivência social. Foi mencionado que, através da iniciativa, tais pessoas tiveram acesso a lugares onde nunca estiveram, a exemplo de universidades (em cursos, palestras, e eventos) e viagens a outros estados. Diversas pessoas mencionaram que voltaram a estudar após ingressarem em seus grupos, devido ao aumento da auto-estima; e que passaram a ter consciência do seu papel na sociedade por exercer cidadania através do voto. Todos estes benefícios granjeados foram denominados no estudo de ganhos sociais.

- Ganhos não financeiros obtidos: Foram apontados diversos benefícios em se realizar o trabalho de forma coletiva. Algumas pessoas observaram que, individualmente, não teriam condições financeiras para manter um empreendimento. O trabalho coletivo foi mencionado por pessoas de quatro empreendimentos como uma “terapia”. Apenas duas pessoas, de empreendimentos distintos e por motivos diferentes, manifestarem preferir o trabalho individual, mas concordaram com os demais entrevistados que o trabalho em grupo é prazeroso e divertido. Relatou-se que, nos empreendimentos, o trabalho é mais leve, menos estressante.

Apontou-se ainda que, nos empreendimentos, alguns descobriram habilidades desconhecidas ou tiveram oportunidade de realizar trabalhos que jamais tinham tido a chance de fazer. A oportunidade de se manterem ocupados economicamente, o aprendizado, a convivência com pessoas diferentes e a auto-valorização foram amplamente citados. Estes ganhos fizeram tais membros crescerem como pessoas, e foram classificados na pesquisa como ganhos humanos.

Mecanismos de Sobrevivência

a) Soluções Encontradas

Apesar das muitas dificuldades na área da Contabilidade, os grupos encontraram algumas alternativas simples para gerenciar seus empreendimentos. No que diz respeito ao registro contábil, por exemplo, em todos os grupos há um fluxo de caixa simplificado. Em um caderno, eles anotam quanto vendem (entradas) e quanto gastam (saídas), quem vendeu os produtos e o saldo, que é dividido entre os membros como excedente. Nas cooperativas Caec e Coopertextil, estes procedimentos não se fazem necessário, já que na primeira, a parte contábil é de responsabilidade dos técnicos que acompanham o empreendimento, e em relação à segunda, há uma contadora contratada pelo grupo para efetuar tal serviço.

A metade dos empreendimentos estudados faz parte do Fórum Baiano de Economia Solidária, rede que envolve grupos, entidades de assessoria e pesquisadores da temática da Economia Solidária, promovendo discussões sobre o campo, comercialização de produtos e uma militância para a adoção de políticas públicas favoráveis ao surgimento e manutenção de organizações solidárias. A participação neste espaço de debate e ação se constitui em uma solução encontrada pelos empreendimentos para obter tanto ganhos financeiros, através de feiras e encontro, como aqueles pessoais e sociais.

b) O papel das entidades externas na manutenção dos grupos solidários

Conforme já mencionado, todos os grupos contam com algum tipo de assessoria. Há ainda a interface de alguns grupos com entidades publicas e governamentais, através de doações, por parte dessas, de recursos de ordem financeira e material, sendo tais doações captadas com o auxílio das entidades de apoio. Ambos os tipos de ajuda visam possibilitar o cumprimento do papel econômico dos empreendimentos, e colaboram para a manutenção do empreendimento. Isto se dá de maneira diferenciada em cada empreendimento.

A Caec, grupo com maior êxito em relação aos demais, por exemplo, recebe total assessoria do Pangea, e embora haja preocupação em se preparar o grupo para que seja autônomo, há ainda uma forte dependência da assessoria. Na cooperativa Artemãos, também há um apoio significativo, embora não tão abrangente como no primeiro caso.

Observa-se assim o papel de outras entidades no funcionamento dos empreendimentos solidários. As entidades que prestam assessoria, além de fornecerem apoio na área de gestão e capacitação, exercem a função de captação de recursos financeiros e materiais para manter tais empreendimentos. Empresas, ONGs e o Governo, seja municipal, estadual ou federal, colaboram fornecendo estes recursos. No caso do Governo, exerce-se o ainda o papel de proporcionar um ambiente favorável às iniciativas solidárias, através da criação de leis e programas públicos. Tais auxílios se constituem um importante suporte para que os empreendimentos permaneçam em funcionamento cumpram sua função econômica.

O que é fundamental destacar-se nos argumentos acima, é que nenhum grupo se mantém de forma independente. Mesmo os que não contam com assessoria para captar-lhes recursos ou com financiamento de entidades públicas e privadas recebem algum tipo de auxílio financeiro ou material; e o acompanhamento técnico e administrativo recebidos objetiva o alcance da geração ou ampliação de excedentes.

7. Conclusão

A permanência dos associados que continuam a manter a organização está relacionada à existência de meios de subsistir de outras fontes que não os recursos auferidos com a atividade econômica do empreendimento. Porém, mesmo tais membros prescindem de ganhos financeiros. A perspectiva de obtê-lo impele os grupos a persistirem, porém a escassez de excedentes, caso se prolongue, se constitui uma grande ameaça à sobrevivência dos empreendimentos.

Constatou-se, porém, que os outros tipos de resultados, sobretudo os ganhos humanos e sociais, também são importantes para manter a iniciativa funcionando. Mesmo na única cooperativa onde já se obtém uma regular renda financeira, estes são valorizados; e naqueles grupos onde não há excedentes são eles, em parte, que levam as pessoas a continuarem mantendo os empreendimentos. Junto a eles, assumem importância as expectativas que os membros continuam a manter sobre o futuro dos empreendimentos.

As conclusões obtidas nesta pesquisa não são taxativas, pois derivam de um estudo de caso de grupos distintos entre si e de outros empreendimentos solidários, e inseridos em uma determinada realidade socioeconômica. Portanto, não se pode deduzir que os mesmos fatores motivam outras iniciativas solidárias. É interessante observar, contudo, que muitas dificuldades apontadas se assemelham com aquelas encontradas por pesquisadores em seus estudos, e alguns fatores de motivação sugeridos pela literatura são condizentes com aqueles detectados nos empreendimentos. Os dados apresentados neste artigo oferecem, no entanto, maior esclarecimento sobre a realidade dos empreendimentos da Economia Solidária e sua lógica de funcionamento, e podem servir de base para estudos mais amplos e aprofundados.

8. Referências

ALMEIDA, Sandra Mara Rommel de. Construindo Alternativas de Geração de Trabalho e Renda: PRONINC – Programa Nacional de Incubadoras de Cooperativas Populares. Cadernos da Oficina Social, n. 10, Rio de janeiro: Centro de Tecnologia, Trabalho e Cidadania, 2002, 117 p. Disponível em:

Acesso em: 14 nov. 2003.

BARROS, Cleyton Miranda. Gestão de Empreendimentos Solidários. 2003, 47 f. Monografia (Bacharelado em Administração) – Centro Federal de Educação Tecnológica da Bahia. Orientador: Prof. Doutor Nilton Vasconcelos.

FRIGOTTO, Gaudêncio. A Ideologia que Embala a Galinha dos Ovos de Ouro. In: Sindicalismo & Cooperativismo. A Economia Solidária em Debate: transformações no mundo do trabalho. São Paulo: UNITRABALHO, 1999, p. 93-112.

MOURA, Maria Suzana; MEIRA, Ludmila. Desafios da gestão de empreendimentos solidários. Bahia Análises & Dados, Salvador, SEI v.12, n.1, p.77-84, jun. 2002.

NASCIUTTI, Jacyara C. Rochael. Cooperativismo Popular e Cidadania: O que a Psicologia Social e Institucional tem a ver com isso? Disponível em:

Acesso em: 10 abr 2004.

NUNES, Débora. A Construção de uma experiência de Economia Solidária num bairro periférico de Salvador. Bahia Análises & Dados, Salvador, SEI v.12, n.1, p.59-76, jun. 2002.

SINGER, Paul. Desafios à Solidariedade. In: Sindicalismo & Cooperativismo. A Economia Solidária em Debate: transformações no mundo do trabalho. São Paulo: UNITRABALHO, 1999, p. 63-76.

___________. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Perseu Abramo, 2002.