22 setembro, 2006

Motivações e Sobrevivência em Empreendimentos Solidários









III Encontro Internacional de Economia Solidária Trabalho na sociedade contemporânea

Motivações e Sobrevivência em Empreendimentos Solidários

Trabalho na Sociedade Contemporânea

Gleide L. de Souza(bolsista IC); Nilton Vasconcelos (professor pesquisador) - Centro Federal de Educação Tecnológica da Bahia (CEFET-BA)

Resumo

Este artigo aborda os desafios enfrentados por empreendimentos pertencentes ao campo da Economia Solidária para se manterem em funcionamento; bem como os fatores e motivações que permitem que seus membros os sustentem apesar de tais obstáculos. São considerados ainda alguns mecanismos de sobrevivência destes grupos associativos. A análise aqui proposta sedimenta-se em um estudo realizado em seis organizações integradas por trabalhadores de baixa renda, em sua maioria mulheres, moradoras de bairros populares da cidade de Salvador. Identificou-se inicialmente as dificuldades encontradas, que incluem a falta ou escassez de geração de renda e os obstáculos da gestão coletiva e domínio de técnicas gerenciais. Posteriormente, constatou-se aspectos que favorecem a permanência dos membros nos grupos; motivações que os animam a persistir, destacando-se os ganhos humanos e sociais; e meios encontrados pelas iniciativas para se manterem.

Palavras-Chave: Economia Solidária, Empreendimentos Solidários, Gestão, Motivação.

1. Introdução

Amplia-se cada vez mais no cenário brasileiro e mundial a discussão sobre um novo tipo de economia, fundamentada em princípios tais como a solidariedade e reciprocidade. Posta como uma alternativa de ocupação e geração de renda para trabalhadores excluídos do mercado de trabalho – para alguns, ela pode inclusive vir a substituir o modelo capitalista em vigor - a Economia Solidária abarca dentro de si diversos tipos de iniciativas, a exemplo de clubes de troca, projetos econômicos comunitários, cooperativas de crédito, de consumo e de habitação, e empreendimentos solidários, tais como empresas autogestionárias, cooperativas populares e associações. Considerando-se especificamente os empreendimentos, observa-se que estes são constituídos por pessoas de camadas humildes da sociedade que buscam uma alternativa de ocupação econômica; e objetivam a produção e comercialização coletiva regida pelos princípios desta economia.

O crescente número de iniciativas solidárias e o relativo êxito que algumas delas vêm obtendo mostram que é possível exercer uma atividade produtiva sob uma nova concepção, a de deter e gerir coletivamente os meios de produção. Ao mesmo tempo, nota-se que é um grande desafio para pessoas de origem popular romper o paradigma de exclusivamente receber e obedecer ordens, enraizado há muitos anos na sociedade do Capitalismo.

São muitos os vetores desfavoráveis à detenção dos meios de produção por tais pessoas, conforme será apontado adiante. Muitos empreendimentos parecem inviáveis economicamente, mas apesar disso se mantém em funcionamento, certos destes há considerável tempo. Esta constatação instiga o interesse em desvendar os fatores que resultam na permanência destas organizações.

2. Problema de Pesquisa e Objetivo

Este artigo visa apresentar os resultados da pesquisa “Empreendimentos Solidários: desafios e sobrevivência. A pesquisa se propôs a responder a seguinte problemática: quais fatores contribuem para que os empreendimentos populares permaneçam ativos, apesar das dificuldades enfrentadas em sua gestão?

O estudo foi desenvolvido com o intuito de detectar aspectos que favorecem a sobrevivência das iniciativas solidárias, apesar das diversas forças contrárias à sua permanência; mecanismos de sobrevivência nelas encontrados; bem como motivações que levam seus membros continuarem a mantê-las.

Entender a permanência dos grupos solidários pressupõe a compreensão de que estes obedecem a uma lógica distinta das que regem outros tipos de organizações, e diferem também destas quanto à sua finalidade. Observando-se esta afirmativa, realizou-se uma revisão de literatura acerca das particularidades da Economia Solidária e dos empreendimentos que dela fazem parte, identificando-se também as dificuldades observadas em grupos solidários, por diversos autores em estudos de caso, e ainda hipóteses por estes esboçadas para a solução do problema proposto. Este levantamento bibliográfico será apresentado, de forma sintética, a seguir.

3. Revisão de Literatura

Considerações sobre Economia Solidária

Engloba-se na Economia Solidária diversificadas vertentes de atuação que, em linhas gerais, defendem a manutenção da vida e o bem estar coletivo. Assim, são encontradas correntes que defendem a produção e comercialização agrícola responsável; a não destruição do solo e garantia das propriedades nutricionais dos alimentos; a preservação dos recursos naturais e do meio ambiente; o acesso a uma boa educação para todos; o consumo responsável e o uso de softwares livres. Tais correntes não se manifestam de forma isolada, mas são interligadas e comunicantes. Na sua dimensão econômica, a Economia Solidária combina economia e solidariedade, conceitos vistos como antagônicos que, juntos, expressam ajuda mútua, união para produzir, junção com o outro para busca da sobrevivência. Neste campo, a cooperação é diretamente o princípio organizador da economia.

Embora recente – desenvolve-se a partir da década de 1980 no mundo, e da década de 1990 no Brasil – este não se trata de um movimento novo. Possui raízes no antigo cooperativismo, fundamentado na filosofia de pensadores utópicos como Robert Owen e Charles Fourier, que aflorou por ocasião da Revolução Industrial, no Século XIX, um período de crise para os trabalhadores semelhante à que ocorre na contemporaneidade. Milhares de trabalhadores, naquela época, perderam seus empregos ao serem substituídos pelas máquinas, assim como hoje estão desempregados ou subempregados devido ao advento de novas tecnologias, que requerem cada vez menos trabalho humano, e à reconfiguração da ordem econômica capitalista (SINGER,1999).

No Brasil, os efeitos negativos das tendências mundiais se somam à herança de exclusão e desigualdades que vêm do passado. Com a abertura da economia brasileira e a conseqüente crise no mercado do trabalho, surge um “novo cooperativismo” – terminologia adotada por Singer, dentre outros autores – que abrange empresas autogestionárias, projetos comunitários e cooperativas populares. Singer (2002) aponta a cooperativa de produção (cooperativas populares) como protótipo de empresa solidária. Tais cooperativas, assim como outros empreendimentos solidários, são iniciativas populares que priorizam os valores de solidariedade e a formação educacional e cidadã dos seus membros.

Nos empreendimentos solidários, o processo de produção satisfaz principalmente as necessidades dos envolvidos na atividade produtiva de se manterem ocupados economicamente; de se sentirem inclusos na sociedade; de se relacionarem com os outros membros do empreendimento; e de obterem sustento. A lógica destas iniciativas, distinta e mais complexa do que a lógica que rege as empresas capitalistas, caracteriza-se como a “lógica da necessidade”, cuja finalidade é a geração de renda e postos de trabalho.

Desafios dos Empreendimentos Solidários

Os empreendimentos populares enfrentam grandes desafios para garantir a sua sobrevivência. Alguns pesquisadores (MOURA e MEIRA, 2002; NASCIUTTI, 2004; NUNES, 2002; BARROS, 2003) citam, dentre outros: 1) a não geração de excedentes para seus membros, que buscam renda para o sustento familiar; 2) dificuldades na contabilidade, destacando-se a falta de controle eficiente do fluxo de entrada e saída de recursos financeiros e materiais; 3) a rotatividade dos membros devido à demora nos resultados (geração de excedentes) e à atração ainda existente pela “segurança” da carteira assinada oferecida pelo emprego formal; 4) a falta de controle de qualidade dos produtos; 5) dificuldades no processo produtivo e na comercialização dos produtos; 6) a dependência gerada pela ajuda externa; e 7) dificuldades relacionadas ao processo de tomada de decisões, por ser difícil, para pessoas acostumadas apenas a obedecer, romper a barreira entre o trabalho braçal e o intelectual.

Destaca-se aí o fato de que muitos empreendimentos esparsamente geram excedentes suficientes para manter-se e para remunerar seus membros. Assim, funcionam de maneira precária. Frigotto (1999) menciona que a grande dificuldade dos grupos solidários é “[...] encontrar o caminho que viabilize essa proposta sem ser um trabalho de miséria, mas um trabalho que dignifique e que permita ganhar a vida com um nível mínimo de dignidade” (FRIGOTTO, 1999, p. 107).

Almeida (2002) aponta que é imperativa a necessidade de interação entre as organizações solidárias e as empresas capitalistas formais. Para ela, esta necessidade representa um desafio para tais iniciativas, pois enfrentam dificuldades para inserir seus produtos no mercado formal. Apesar de se constituírem outra lógica de produção e finalidade, não há para elas um mercado alternativo, regido pelos princípios e valores solidários. A autora encara o contato com o mercado formal como um mal necessário.

Do ponto de vista estritamente econômico, muitos destes empreendimentos estariam condenados à falência. No entanto, apesar das dificuldades, eles sobrevivem, alguns já por anos. A literatura aponta como provável explicação para este fato a existência de outros ganhos, não-financeiros, tais como o aumento da auto-estima; conhecimento adquirido; a conscientização dos direitos cidadãos; a ampliação da visão de mundo; e o prazer derivado do trabalho em grupo. Tais ganhos assumem tamanha importância para os membros dos empreendimentos que os levam a permanecer nas iniciativas.

Moura e Meira (2002) observaram, ao realizarem uma pesquisa em uma cooperativa popular, que os seus membros valorizavam a possibilidade de ocupação econômica fornecida pelo empreendimento, e encaravam o trabalho coletivo como mais estimulante e mais agradável. Já Barros (2003) cita a presença, em uma outra iniciativa por ele estudada, elementos como a “[...] auto-estima, a identificação com o trabalho e com o grupo produtivo, o companheirismo, além de uma noção crescente de autonomia e cidadania [...]”.

Além disso, grande parte dos empreendimentos solidários não se mantém sozinhos, dependendo em grande parte do apoio financeiro e assessoria de entidades de apoio, empresas, governo, organizações não-governamentais e entidades internacionais de financiamento de projetos populares. Levando-se em conta o exposto, desenvolveu-se o estudo de caso descrito adiante.

4. Metodologia Adotada

Com o intuito de detectar aspectos que favorecem a sobrevivência das iniciativas solidárias, apesar das diversas forças contrárias a sua permanência; e analisar as soluções que os grupos adotaram para superar seus problemas, desenvolveu-se uma pesquisa de campo em seis empreendimentos solidários da cidade de Salvador. Inicialmente buscou-se comprovar a existência de problemas de gestão nos grupos pesquisados, bem como se identificar quais seriam estes. A constatação e a identificação desses problemas não só legitima o questionamento do problema de pesquisa como tem ainda o papel de auxiliar a busca dos fatores que levam à sobrevivência das cooperativas e das soluções encontradas.

Para conduzir o estudo, foi adotada uma pesquisa do tipo exploratória qualitativa descritiva, a partir de visitas aos empreendimentos escolhidos e entrevista com seus assessores, adotando-se como ferramenta um questionário, para detectar as dificuldades, e dois roteiros de entrevista (um direcionado aos membros dos grupos, e outro voltado para os técnicos), com a finalidade de aferir os fatores que levam os grupos a permanecerem ativos. Definiu-se como amostra o número de cinco pessoas por empreendimento, dentro de um universo que variou entre seis e cinqüenta e sete pessoas. Por ocasião das visitas, realizou-se ainda a observação direta dos processos produtivos e práticas de gestão.

Os grupos selecionados para compor o objeto de pesquisa foram escolhidos levando-se em conta o tempo de existência; a distinção da origem social dos associados; a facilidade de acesso a informações referentes à cooperativa; e o fato de pertencerem a comunidades populares e serem formados por pessoas de baixa renda. Os empreendimentos pertencem a comunidades distintas e são assessorados por entidades que utilizam variadas metodologias de apoio técnico.

5. Perfil dos Empreendimentos Pesquisados

Para melhor compreensão dos resultados da pesquisa, se faz necessária a apresentação de um breve perfil de cada organização estudada. Neste perfil se inclui as dificuldades específicas observadas em cada grupo.

Coopertane

A Coopertane, fundada no ano de 2000, se ocupa da reciclagem de papel e produção de artefatos, tais como cartões, caixas e porta-retratos. Os membros são na sua totalidade mulheres, e este empreendimento funciona no porão da casa de uma delas. A formação deste grupo foi fomentada por uma Incubadora de Cooperativas, que lhe forneceu ainda cursos de capacitação e apoio na captação de recursos financeiros e materiais. Ultimamente, porém, segundo constatado nas entrevistas com as cooperadas e com a assessoria, não tem havido contato entre a cooperativa e a incubadora, ou alguma forma de apoio por parte dos técnicos. O grupo passou a desenvolver relações com outras entidades que auxiliam a gestão da cooperativa e concede esparsamente ajuda financeira. A iniciativa ainda não foi legalizada, e não recebe financiamento governamental ou privado.

O empreendimento não gera excedentes para serem distribuídos entre os cooperados. O resultado financeiro obtido é empregado para saldar despesas da iniciativa. No período, há apenas seis membros no grupo, o que desestimula o grupo e põe em risco o funcionamento do empreendimento. Entre os desafios enfrentados, aponta-se a dificuldade em padronizar e manter a qualidade dos produtos; e a falta de estrutura da sede da cooperativa.

Uniarte

A Uniarte, cooperativa fomentada pela Prefeitura de Salvador, produz e comercializa tapetes de borracha. Constituída e legalizada no ano de 2002, está localizada em um galpão cedido pela Prefeitura, que, além disso, doou o maquinário, fornece transporte dos produtos para feiras e exposições e assume o custo do fornecimento da água e energia elétrica. Inicialmente, esta fornecia recursos financeiros e materiais, os quais foram suspensos posteriormente. Vinte e três pessoas constituíram a cooperativa, mas apenas treze permanecem. Seus membros obtêm excedentes, embora escassos e irregulares.

Amevf

A Associação de Mulheres foi fundada no ano de 2001 com o objetivo de exercer um papel social dentro da comunidade na qual está inserida, principalmente no que diz respeito à promoção da valorização e profissionalização das mulheres. Exerce este papel, embora não da maneira desejada, através da realização de palestras e campanhas de saúde, ministradas pelas próprias associadas. Sua atividade econômica inclui a confecção e comercialização dos mais variados tipos de produtos artesanais e o atendimento a encomendas de doces e salgados. Não são assessoradas por uma entidade de apoio e tampouco contam com auxílio financeiro, mas eventualmente recebem auxílio material e acompanhamento de uma universidade.

Em média, a associação possui dez membros atuantes, porém este número oscila frequentemente. Há excedentes de maneira bastante precária, suficiente apenas para pagar alguns custos e despesas – muito raramente estes reembolsam o trabalho produtivo das sócias. Conta-se como dificuldades específicas o mix de produtos bastante amplo, prejudicando a continuidade da oferta e a manutenção da qualidade; e a falta de estrutura do local onde funciona a associação.

Artemãos

A Artemãos, cooperativa que produz bonecas de pano afro descendentes, se originou de um grupo de mulheres que tomavam cursos de artesanato promovidos pela ONG Vida Brasil. Em 2003, decidiram montar uma cooperativa, que no ano seguinte foi legalizada. A Vida Brasil, com o financiamento de uma entidade internacional, fornece apoio técnico, administrativo, financeiro, e de captação de recursos. Atualmente, conta com vinte e um membros.

O grupo não obtém renda da cooperativa, pois os excedentes obtidos com a venda dos produtos são utilizados para saldar pequenas despesas ou depositados em um fundo de reservas. São alguns obstáculos enfrentados no empreendimento: falhas de comunicação no grupo, conflitos freqüentes, falta de estoque, e dificuldades em cumprir o prazo da entrega de encomendas, pois os membros se ausentam bastante do trabalho.

Coopertextil

O grupo que deu origem à Coopertextil era formado por mulheres e portadores de necessidades especiais, oriundos de diversas comunidades carentes de Salvador, que participaram de uma oficina de tecelagem manual, mantida pela Prefeitura. No ano de 2004, formaram a cooperativa. A Prefeitura auxiliou o grupo na formação, legalização do empreendimento, aluguel de espaço para funcionamento, e inicialmente na captação de recursos financeiros e materiais. Com a mudança de grupo político na gestão, contudo, os cooperados afirmam que este apoio diminuiu muito.

Atualmente, há nove cooperados e dez alunos que recebem capacitação profissional em tecelagem, considerados na prática membros do grupo. A Cooperativa recebe atualmente recursos financeiros de um órgão do estado da Bahia. Aponta-se nela dificuldades em se manter regular a sua documentação, o que resultou inclusive na apreensão de uma carga de matéria-prima adquirida pelo grupo, e constantes conflitos entre os seus membros.

Caec

A Caec é tida como referência entre as cooperativas populares de Salvador, devido ao seu êxito em gerar um considerável excedente aos seus membros mensalmente; pelo seu porte; por possuir uma sede ampla e própria; e pela profissionalização das atividades produtivas e de gestão. O grupo é formado por antigos catadores do aterro sanitário de Canabrava, que montaram a cooperativa em 2002, fomentados pela ONG Pangea. Esta forneceu cursos de reciclagem, meio ambiente e cooperativismo, e atualmente presta assessoria técnica e administrativa ao grupo, atuando ainda na divulgação do empreendimento, relacionamento com clientes, captação de recursos e apoio de organizações privadas e públicas. A cooperativa funciona em horário integral, e trabalha com a coleta e comercialização de resíduos sólidos recicláveis, coletados em mais de cem pontos da cidade. Seus membros obtêm dela pouco mais de um salário mínimo.

Embora não mencionada nas entrevistas, observou-se na literatura o fato de que a Limpurb, órgão responsável pela limpeza urbana de Salvador, impõe obstáculos à Caec, a exemplo de delimitação de território e apreensão de material coletado, pois a cooperativa criada pelo órgão (Coopcicla) é a responsável pela coleta seletiva em Salvador. Assim, outras cooperativas são vistas como concorrência. Durante o estudo, notou-se que a renda gerada pelo empreendimento, embora expressiva, ainda não é suficiente para seus membros.

6. Análise dos Resultados

Na primeira parte da pesquisa de campo, detectou-se diversos problemas de gestão nos grupos pesquisados, confirmando o pressuposto da pesquisa. Algumas dificuldades específicas foram pontuadas acima; no entanto observou-se desafios comuns aos grupos. Deve-se ressaltar, contudo, que mesmo esses desafios semelhantes se apresentam em grau diferenciado, e em alguns grupos mais desenvolvidos economicamente, como a Caec, diversos deles não são encontrados.

A comercialização é o principal obstáculo nos grupos estudados, excetuando-se a Caec.. Esta tem sido a principal carência dos empreendimentos solidários, que se vêem num dilema: competir com grandes empresas no mercado formal ou empenhar grande esforço e tempo na criação de um novo espaço solidário para inserir seus produtos e serviços. Sanando-se esta dificuldade, outros problemas também seriam solucionados, tais como a escassez de excedentes.

Um aspecto a ser destacado, dentre as dificuldades observadas, é que poucos associados internalizam a condição de proprietários dos empreendimentos e não raras vezes os cooperados deixam de participar cotidianamente das atividades de gestão e do processo decisório. Em muitos casos, sequer procuram estar atualizados sobre o que se passa no grupo, conservando ainda uma cultura de transferir a responsabilidade para os diretores ou líderes. Alguns entrevistados não souberam informar, por exemplo, como é feita a prestação de contas. Em todas as iniciativas encontrou-se um pequeno grupo que toma a frente do empreendimento, que “empurra” os demais. Estas observações depõem negativamente para a caracterização destes grupos como integrantes da Economia Solidária visto que a autogestão é um dos princípios fundamentais a ser observado.

Na segunda etapa do trabalho, foram encontradas soluções para a problemática proposta. Em geral, os membros que permanecem vinculados aos grupos estiveram presentes na formação dos empreendimentos. Observou-se como resultados fatores exógenos que influenciam na sobrevivência das organizações; e dois mecanismos de sobrevivência encontrados neste tipo de iniciativa.

Fatores que Influenciam na Sobrevivência

Em geral, os membros que permanecem vinculados aos grupos estão neles desde a sua formação. Observou-se como resultados fatores externos que contribuem para que as pessoas permaneçam nos empreendimentos e outros que as motivam a se manter neles.

a) Fatores favoráveis à permanência

Os fatores favoráveis à permanência dos empreendimentos influem mais efetivamente nos empreendimentos que não geram renda para os seus membros (ou o fazem de maneira escassa), já que no caso do único grupo que obtém um rendimento regular e significativo, a Caec, o resultado financeiro obtido, embora não plenamente satisfatório, é um dos principais fatores responsáveis por manter as pessoas na iniciativa. É importante apontar que tais fatores são externos e agem independentemente da vontade dos membros, influenciando a retenção deles no empreendimento. São alguns destes fatores:

- Falta de perspectivas futuras: A ampla maioria dos membros dos grupos são mulheres com idade acima de quarenta anos, pouca escolaridade, de classe econômica baixa e/ou sem formação profissional. Com este perfil, tais pessoas dificilmente obteriam um emprego formal ou teriam condições de investir em uma atividade produtiva individualmente. Diante deste quadro, a única alternativa que estes encontram é insistir, esperando melhorias nas condições de vida.

- Outras fontes de renda: Excetuando-se a Caec, em nenhum dos empreendimentos os seus membros dependem exclusivamente da sua geração de renda. Quando há rendimentos, estes complementam o orçamento familiar. Constatou-se que as pessoas se mantêm com bolsas-auxílio concedidas pelo Governo, aposentadorias, contam com a renda de algum parente próximo, pensões de ex-marido e/ou exercem outra atividade econômica (informal) além do trabalho no empreendimento solidário. Mesmo na Caec, três das cinco pessoas entrevistadas possuem outras fontes de renda, mas neste caso a situação é inversa: estas são um complemento dos excedentes retirados do empreendimento.

b) Motivações

Em relação aos aspectos motivadores dos membros, estes podem ser encontrados em todos os grupos; porém, semelhante aos fatores que favorecem a permanência, ganham maior proeminência naqueles em que os rendimentos são precários. Tais motivações animam as pessoas a continuarem mantendo seus empreendimentos, apesar dos diversos desafios. São alguns deles:

- Expectativa de que o empreendimento venha a ter sucesso: O conceito de sucesso, para os membros dos empreendimentos pesquisados, não é meramente a obtenção ou ampliação da renda, motivação abordada anteriormente, mas engloba ainda o crescimento da cooperativa ou associação e expansão de suas atividades. Neste sentido, seriam incorporados novos membros – fato que estimularia os membros antigos, originaria mais postos de trabalho para absorver pessoas com necessidade de renda e atrairia a atenção da sociedade para os grupos, resultando isso em maior viabilidade e projeção aos empreendimentos e ao reconhecimento dos esforços empregados pelos seus membros, apesar das dificuldades.

Na Caec, cooperativa que é tida como exemplo deste “sucesso”, encontrou-se o sentimento de satisfação descrito acima entre os seus membros. Nesta fase, há agora a expectativa de se atingir mais uma etapa: segundo uma das pessoas entrevistadas, os membros desejam ser “uma grande referência, a melhor cooperativa da Bahia”.

- Abertura de novos horizontes: A participação nos empreendimentos trouxe para alguns dos seus membros novas experiências, ampliação da visão da sociedade e do seu papel enquanto cidadãos, o desejo de estabelecerem novas metas para as suas vidas e outros ganhos relacionados à vivência social. Foi mencionado que, através da iniciativa, tais pessoas tiveram acesso a lugares onde nunca estiveram, a exemplo de universidades (em cursos, palestras, e eventos) e viagens a outros estados. Diversas pessoas mencionaram que voltaram a estudar após ingressarem em seus grupos, devido ao aumento da auto-estima; e que passaram a ter consciência do seu papel na sociedade por exercer cidadania através do voto. Todos estes benefícios granjeados foram denominados no estudo de ganhos sociais.

- Ganhos não financeiros obtidos: Foram apontados diversos benefícios em se realizar o trabalho de forma coletiva. Algumas pessoas observaram que, individualmente, não teriam condições financeiras para manter um empreendimento. O trabalho coletivo foi mencionado por pessoas de quatro empreendimentos como uma “terapia”. Apenas duas pessoas, de empreendimentos distintos e por motivos diferentes, manifestarem preferir o trabalho individual, mas concordaram com os demais entrevistados que o trabalho em grupo é prazeroso e divertido. Relatou-se que, nos empreendimentos, o trabalho é mais leve, menos estressante.

Apontou-se ainda que, nos empreendimentos, alguns descobriram habilidades desconhecidas ou tiveram oportunidade de realizar trabalhos que jamais tinham tido a chance de fazer. A oportunidade de se manterem ocupados economicamente, o aprendizado, a convivência com pessoas diferentes e a auto-valorização foram amplamente citados. Estes ganhos fizeram tais membros crescerem como pessoas, e foram classificados na pesquisa como ganhos humanos.

Mecanismos de Sobrevivência

a) Soluções Encontradas

Apesar das muitas dificuldades na área da Contabilidade, os grupos encontraram algumas alternativas simples para gerenciar seus empreendimentos. No que diz respeito ao registro contábil, por exemplo, em todos os grupos há um fluxo de caixa simplificado. Em um caderno, eles anotam quanto vendem (entradas) e quanto gastam (saídas), quem vendeu os produtos e o saldo, que é dividido entre os membros como excedente. Nas cooperativas Caec e Coopertextil, estes procedimentos não se fazem necessário, já que na primeira, a parte contábil é de responsabilidade dos técnicos que acompanham o empreendimento, e em relação à segunda, há uma contadora contratada pelo grupo para efetuar tal serviço.

A metade dos empreendimentos estudados faz parte do Fórum Baiano de Economia Solidária, rede que envolve grupos, entidades de assessoria e pesquisadores da temática da Economia Solidária, promovendo discussões sobre o campo, comercialização de produtos e uma militância para a adoção de políticas públicas favoráveis ao surgimento e manutenção de organizações solidárias. A participação neste espaço de debate e ação se constitui em uma solução encontrada pelos empreendimentos para obter tanto ganhos financeiros, através de feiras e encontro, como aqueles pessoais e sociais.

b) O papel das entidades externas na manutenção dos grupos solidários

Conforme já mencionado, todos os grupos contam com algum tipo de assessoria. Há ainda a interface de alguns grupos com entidades publicas e governamentais, através de doações, por parte dessas, de recursos de ordem financeira e material, sendo tais doações captadas com o auxílio das entidades de apoio. Ambos os tipos de ajuda visam possibilitar o cumprimento do papel econômico dos empreendimentos, e colaboram para a manutenção do empreendimento. Isto se dá de maneira diferenciada em cada empreendimento.

A Caec, grupo com maior êxito em relação aos demais, por exemplo, recebe total assessoria do Pangea, e embora haja preocupação em se preparar o grupo para que seja autônomo, há ainda uma forte dependência da assessoria. Na cooperativa Artemãos, também há um apoio significativo, embora não tão abrangente como no primeiro caso.

Observa-se assim o papel de outras entidades no funcionamento dos empreendimentos solidários. As entidades que prestam assessoria, além de fornecerem apoio na área de gestão e capacitação, exercem a função de captação de recursos financeiros e materiais para manter tais empreendimentos. Empresas, ONGs e o Governo, seja municipal, estadual ou federal, colaboram fornecendo estes recursos. No caso do Governo, exerce-se o ainda o papel de proporcionar um ambiente favorável às iniciativas solidárias, através da criação de leis e programas públicos. Tais auxílios se constituem um importante suporte para que os empreendimentos permaneçam em funcionamento cumpram sua função econômica.

O que é fundamental destacar-se nos argumentos acima, é que nenhum grupo se mantém de forma independente. Mesmo os que não contam com assessoria para captar-lhes recursos ou com financiamento de entidades públicas e privadas recebem algum tipo de auxílio financeiro ou material; e o acompanhamento técnico e administrativo recebidos objetiva o alcance da geração ou ampliação de excedentes.

7. Conclusão

A permanência dos associados que continuam a manter a organização está relacionada à existência de meios de subsistir de outras fontes que não os recursos auferidos com a atividade econômica do empreendimento. Porém, mesmo tais membros prescindem de ganhos financeiros. A perspectiva de obtê-lo impele os grupos a persistirem, porém a escassez de excedentes, caso se prolongue, se constitui uma grande ameaça à sobrevivência dos empreendimentos.

Constatou-se, porém, que os outros tipos de resultados, sobretudo os ganhos humanos e sociais, também são importantes para manter a iniciativa funcionando. Mesmo na única cooperativa onde já se obtém uma regular renda financeira, estes são valorizados; e naqueles grupos onde não há excedentes são eles, em parte, que levam as pessoas a continuarem mantendo os empreendimentos. Junto a eles, assumem importância as expectativas que os membros continuam a manter sobre o futuro dos empreendimentos.

As conclusões obtidas nesta pesquisa não são taxativas, pois derivam de um estudo de caso de grupos distintos entre si e de outros empreendimentos solidários, e inseridos em uma determinada realidade socioeconômica. Portanto, não se pode deduzir que os mesmos fatores motivam outras iniciativas solidárias. É interessante observar, contudo, que muitas dificuldades apontadas se assemelham com aquelas encontradas por pesquisadores em seus estudos, e alguns fatores de motivação sugeridos pela literatura são condizentes com aqueles detectados nos empreendimentos. Os dados apresentados neste artigo oferecem, no entanto, maior esclarecimento sobre a realidade dos empreendimentos da Economia Solidária e sua lógica de funcionamento, e podem servir de base para estudos mais amplos e aprofundados.

8. Referências

ALMEIDA, Sandra Mara Rommel de. Construindo Alternativas de Geração de Trabalho e Renda: PRONINC – Programa Nacional de Incubadoras de Cooperativas Populares. Cadernos da Oficina Social, n. 10, Rio de janeiro: Centro de Tecnologia, Trabalho e Cidadania, 2002, 117 p. Disponível em:

Acesso em: 14 nov. 2003.

BARROS, Cleyton Miranda. Gestão de Empreendimentos Solidários. 2003, 47 f. Monografia (Bacharelado em Administração) – Centro Federal de Educação Tecnológica da Bahia. Orientador: Prof. Doutor Nilton Vasconcelos.

FRIGOTTO, Gaudêncio. A Ideologia que Embala a Galinha dos Ovos de Ouro. In: Sindicalismo & Cooperativismo. A Economia Solidária em Debate: transformações no mundo do trabalho. São Paulo: UNITRABALHO, 1999, p. 93-112.

MOURA, Maria Suzana; MEIRA, Ludmila. Desafios da gestão de empreendimentos solidários. Bahia Análises & Dados, Salvador, SEI v.12, n.1, p.77-84, jun. 2002.

NASCIUTTI, Jacyara C. Rochael. Cooperativismo Popular e Cidadania: O que a Psicologia Social e Institucional tem a ver com isso? Disponível em:

Acesso em: 10 abr 2004.

NUNES, Débora. A Construção de uma experiência de Economia Solidária num bairro periférico de Salvador. Bahia Análises & Dados, Salvador, SEI v.12, n.1, p.59-76, jun. 2002.

SINGER, Paul. Desafios à Solidariedade. In: Sindicalismo & Cooperativismo. A Economia Solidária em Debate: transformações no mundo do trabalho. São Paulo: UNITRABALHO, 1999, p. 63-76.

___________. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Perseu Abramo, 2002.

Um comentário:

Anônimo disse...

o que eu estava procurando, obrigado