02 abril, 2005

Política Pública para a Indústria Automotiva Brasileira na Década de 90: uma análise do seu processo de elaboração


Publicado nos Anais do Enanpad  - Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação em Administração 2003                                                    
Autoria: Nilton Vasconcelos

Resumo: Ao longo da última década podem-se destacar duas políticas públicas adotadas pelo governo brasileiro para o setor industrial e, particularmente, para a indústria automotiva: os acordos resultantes dos debates ocorridos no seio da Câmara Setorial Automotiva e a legislação que estabeleceu o Regime Automotivo Brasileiro, nas suas várias modalidades. Duas políticas e dois procedimentos diferenciados no seu processo de formulação. Neste artigo analisam-se as duas experiências a partir de abordagens teóricas do campo da ciência política — o pluralismo e o neocorporatismo. Considera-se que a alternância entre distintos modelos sofreu forte influência das políticas macroeconômicas praticadas nesse período. Observou-se uma maior interação e negociação entre os atores sociais interessados na vigência do arranjo neocorporatista, e maior centralização política e privilégio para determinado segmento da cadeia produtiva no período seguinte.


Introdução 

Há aproximadamente oito anos, quando o Sr. Fernando Henrique Cardoso assumiu a Presidência da República, uma das medidas de impacto sobre o setor industrial foi o esvaziamento das Câmaras Setoriais, que, nos primeiros anos da década de 90 do Século XX, desempenharam importante papel na formulação das políticas públicas para a indústria.

À época, difundiu-se a ideia de que o novo governo adotaria uma orientação que poderia ser sintetizada na máxima segundo a qual “a melhor política industrial é a não-política industrial”. Essa frase tem correspondência com a corrente de pensamento econômico que proclama ser indesejável toda interferência do Estado na economia, salvo em situações específicas em que, face à falta de perspectiva de retorno, não haja interesse do mercado em investir em determinada atividade. Visto que a política industrial se concretiza através do apoio, proteção, incentivo e estímulo a ramos e atividades econômicas, a implementação de políticas industriais seria compreendida como iniciativa potencialmente causadora de desequilíbrios econômicos ou como premiação à “incompetência” e restrição à elevação dos padrões competitivos das empresas locais. Assim, o esvaziamento das Câmaras Setoriais foi interpretado por vários autores como um indicativo de mudança na condução da política pública para a indústria (COMIN, 1998; BEDÊ, 1997).

Simultaneamente, decretava-se o “fim da Era Vargas” e da política de substituição de importações, com fundamento em um discurso que afirmava a incapacidade do setor público em atuar diretamente no mercado, ao tempo em que ressaltava a suposta superioridade do mercado. As medidas de abertura dos portos promovidas a partir do governo Collor de Mello foram incrementadas com o Plano Real, dessa vez sobretudo em função da sobrevalorização do câmbio. Reduzia-se por esses mecanismos a proteção à indústria local.

Sob a influência das concepções neoliberais, a década de 90 assistiu à redução do tamanho do Estado através dos programas de privatização, terceirização ou publicização, conforme preconizava a reforma coordenada pelo então ministro Bresser (PEREIRA, 1997). No comando da economia, o combate à inflação e ao déficit público foi priorizado. O endividamento público, considerado alto à época — em torno de 60 bilhões de reais (1) — e a conseqüente perda de capacidade de realização de investimentos públicos era argumento apresentado de forma contundente pela equipe de governo para justificar o novo rumo adotado.

Contudo, a noção de que o Estado deixaria de desenvolver políticas setoriais não se sustentou durante muito tempo, sendo a indústria automobilística um palco privilegiado para esta análise.

Interessa-nos neste artigo abordar especificamente duas políticas públicas federais — os acordos resultantes da Câmara Setorial e o Regime Automotivo — que corresponderam a distintos formatos de políticas públicas quanto ao seu processo de elaboração. O Regime Automotivo surge em 1995, no contexto da política de valorização cambial, e representa uma alternativa bastante distinta de elaboração de política pública quando comparada com as Câmaras Setoriais.

A Câmara Setorial Automotiva tem sido discutida por vários autores, entre os quais Bedê (1997), Zauli (1997), Arbix (1996), Anderson (1999) e Guimarães (1994), havendo uma certa unanimidade entre esses em analisar a experiência da Câmara Setorial à luz de uma abordagem teórica neocorporatista. Não existem, contudo, análises que procurem interpretar o Regime Automotivo com base na teoria do campo da ciência política — a partir do qual são desenvolvidos os estudos em administração pública. Mas, a nosso ver, é a abordagem pluralista a que melhor se presta para descrever a política setorial de incentivo à indústria automobilística, que surge com a edição do Regime Automotivo.

A partir de uma breve discussão sobre cada uma das vertentes teóricas referidas e a compreensão que encerram dos processos de elaboração de políticas públicas, serão apontadas na próxima seção as suas principais características, de modo a facilitar a compreensão das políticas setoriais automotivas implementadas no Brasil na última década de 90.

A pesquisa foi concluída em 2001 e buscou analisar o comportamento dos principais atores sociais envolvidos na indústria automotiva brasileira, entendidos como a representação dos setores econômicos, da sociedade, em especial sindicatos, além de organismos governamentais.

Conforme salienta Souza (SD:4), o campo da administração pública, enquanto disciplina, “não se constitui em um único tipo de pensamento ou de teoria, mas sim ela é o resultado da superposição de várias outras disciplinas, sem que isto signifique descuido metodológico ou “salada” teórica”. Por isso mesmo, consideramos indispensável tratar das questões teóricas associadas à formulação de políticas públicas, mas, também, pela natureza do objeto de pesquisa, buscar elementos no campo da teoria econômica que auxiliasse a compreensão do fenômeno em estudo. A mesma argumentação, desenvolvida na citação acima reproduzida, serve para justificar um certo viés sociológico que podemos observar, ainda que pontualmente, neste trabalho. Adicione-se, ainda, a herança intelectual da administração pública: “sua ontologia e suas teorias foram construídas a partir do referencial, conceitos e métodos da ciência política. É preciso lembrar que todas as teorias e métodos carregam consigo pressuposições ontológicas e conseqüências políticas” (SOUZA, SD:6). Neste sentido é que a autora defende o afastamento de teses tradicionais que buscavam despolitizar a disciplina, ou purificar a administração pública da política.

A abordagem do nosso objeto empírico implicou em uma pesquisa documental sobre o processo de elaboração das políticas públicas: os objetivos explicitados pelos atores envolvidos, e mesmo, a avaliação já produzida pelos mesmos atores sociais e agências 2 estatais, sobre os resultados alcançados. Incluiu ainda, a identificação dos condicionantes econômicos, políticos e sociais ao processo de elaboração e implementação das políticas em análise; os referenciais teóricos, quando explicitados, que fundamentaram as decisões dos atores sociais diretamente envolvidos com a formulação das políticas; fatores associados à introdução de inovações tecnológicas, em particular de automação industrial, e à implementação de políticas de flexibilização de direitos trabalhistas, que pudessem ter influenciado negativamente as metas de emprego nos setores automotivo e de autopeças; levantamento da variação da receita tributária relativa aos setores mencionados frente à política de redução de alíquotas ou isenção de impostos e taxas, ao longo da década de noventa.

Neste particular, as estatísticas de acompanhamento do nível de emprego e da produção produzidas pela Associação Nacional de Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), pelo Sindicato da Indústria de Autopeças (Sindipeças) e IBGE, foram de grande valia, especialmente quando confrontadas com as informações elaboradas pelos órgãos governamentais e pelos sindicatos de trabalhadores metalúrgicos, em particular do ABC, de São Paulo e Betim, que tiveram e têm destacada atuação na negociação de inúmeros acordos, e por contemplar as duas principais centrais sindicais do país. Outras organizações, a exemplo da Federação Nacional dos Distribuidores de Veículos (Fenabrave) que produzem dados e análise específicos com relação ao emprego no setor de serviços diretamente ligado à indústria automobilística, foram alvo do nosso levantamento.

2. Abordagens teóricas

Pluralismo

O modelo teórico pluralista/racionalista é fundado nas idéias econômicas neoclássicas. O método neoclássico — o “individualismo metodológico” — baseia-se na ideia de que todos os fenômenos sociais devem ser compreendidos como um produto da ação dos indivíduos e que esse comportamento individual é ‘totalmente racional’, ou seja, é movido por uma busca de maximização de benefícios. Assim, um eleitor ou um consumidor, diante de alternativas que lhe são apresentadas, escolhe aquela que acredita servir melhor aos seus objetivos. A formulação de políticas públicas estaria condicionada a um processo equivalente: diferentes grupos de interesses, atuando junto ao governo, procurariam maximizar benefícios e reduzir custos (LOBATO, 1997: 31).

Assim, o pressuposto do pluralismo é a existência de múltiplos grupos políticos que buscam fazer prevalecer os seus interesses. As demandas e apoios corresponderiam a insumos que seriam processados no interior de um sistema político, no qual os grupos atuam disputando entre si, numa competição entre múltiplos focos de interesses organizados. Os produtos desse processo corresponderiam às decisões, resultantes da correlação de forças existente em determinado sistema político. Teríamos, desse modo, um sistema análogo à situação de mercado de concorrência perfeita (ZAULI, 1997:20), o equilíbrio entre “forças opostas” seria a garantia de uma sociedade livre, onde todos teriam acesso à vida política.

A ação dos Grupos de Interesse é, portanto, fundamental na abordagem pluralista. Segundo Almond e Powel (1972:52), o que caracteriza esses grupos é a existência de um certo número de “indivíduos ligados por laços particulares de preocupação ou de vantagens e que têm certa consciência desses laços”. Assim, a articulação desses interesses é indispensável para a manutenção de uma relação estável entre sociedade e sistema político. Sem a abertura de canais de manifestação de insatisfação por grupos da sociedade, a tendência 3 é o crescimento do descontentamento; esse crescimento pode levar à violência, o que, segundo essa concepção, representa uma quebra no desejável equilíbrio.

Diferentemente da teoria liberal clássica, os pluralistas não concebem um Estado neutro, acima dos grupos. Entretanto, consideram haver um “interesse público”, representado pelo governo (em substituição ao Estado), neutralizando-se frente aos grupos de interesse. Mas não há uma unanimidade entre os estudiosos quanto a esse aspecto crucial. Smith (1995), por exemplo, entende que, na perspectiva pluralista, a burocracia estatal, como núcleo formulador de políticas, deve ser vista como mais um grupo de interesse. Mesmo a noção de equilíbrio quanto à capacidade de influência dos grupos de interesse sobre o Estado/governo tem sido questionada (LOBATO, 1997), admitindo-se que alguns grupos têm, naturalmente, maiores chances de fazer valer os seus interesses.

A essas interpretações pluralistas estão associadas as abordagens que concebem a intervenção do Estado na elaboração de políticas como uma oportunidade para que o comportamento dos diversos grupos políticos seja dirigido para auferir ganhos. Assim, em função da existência de algum privilégio no interior do Estado — subsídios, vantagens —, os agentes econômicos tenderiam a se dedicar à “captura” de alguma fatia desses benefícios (rent-seeking), criando condições para a prática da corrupção. Nesse contexto, os agentes de decisão (burocratas, políticos e grupos de interesse) procuram garantir uma ampliação da sua influência e poder de decisão dentro do setor público — este se constitui em um dos principais argumentos com que se tenta justificar uma posição contrária à intervenção do Estado na economia e, particularmente, a que se efetiva através de políticas industriais.

Uma outra perspectiva teórica, nesse mesmo campo, que tem como origem o pensamento econômico neoclássico, é a Teoria da Escolha Racional (TER), que se preocupa em explicar os resultados coletivos a partir da maximização da ação dos indivíduos e tenta identificar situações ideais, de equilíbrio, generalizando os resultados em axiomas, em verdades universais (GREEN e SHAPIRO, 1994). Na Teoria da Escolha Pública (TEP), com similaridade, entende-se que as organizações nada mais são que um agregado de indivíduos em busca de benefícios comuns para todos. Assim, os bens emanados dos serviços públicos devem ter seus custos mensurados e atribuídos aos seus beneficiários, sendo a análise do desempenho dos serviços públicos indispensável à permanência da oferta dos bens públicos visando à racionalização dos recursos, por definição limitados e escassos (MENY E THOENIG, 1989:68-71).

A crescente influência da TER na ciência política tem sido associada aos estudos baseados na Teoria dos Jogos(2), que se propõe a contribuir para o desenvolvimento de uma teoria da ação através da geração de previsões a partir de modelos matemáticos, portadores de uma suposta universalidade. A teoria dos jogos baseia-se em um modelo de utilidade esperada, no conceito de equilíbrio e na existência de regras do jogo como fatores exógenos (MUNCK, 2000), características essas que têm motivado fortes críticas. Em primeiro lugar, porque, diante de um conjunto de escolhas possíveis, a Teoria dos Jogos pressupõe que determinados comportamentos dos atores são mais prováveis e que esses comportamentos podem ser universalizados, aplicáveis a distintas situações. Em segundo lugar, porque, para tornar “viável” a geração de previsões, utiliza-se do conceito de equilíbrio, condição em que é reduzido arbitrariamente o número de variáveis. A simplificação impede a geração de modelos complexos, o que jogaria por terra a possibilidade de realizar as generalizações pretendidas por essa abordagem. Por último, a terceira crítica feita à Teoria dos Jogos referese ao fato de que as ‘regras do jogo’, ou seja, o grupo de jogadores, suas estratégias e preferências, a seqüência de escolhas feitas por esses atores, as informações que possuem, etc. 4 são considerados fatores exógenos, aceitos como verdadeiros previamente e não estando sujeitos a alterações — constantes, portanto.

A despeito dessas limitações, Przeworski (1988) destaca a grande relevância que tem assumido o método econômico no estudo da sociedade, particularmente a ofensiva da visão econômica neoclássica sobre as mais diversas concepções teóricas no campo das ciências políticas, da sociologia, da antropologia e da psicologia social, mesmo entre vertentes teóricas marxistas.

Neocorporatismo

No neocorporatismo, diferentemente de no pluralismo (que vê na ação e interação dos indivíduos e grupos a base para a compreensão das políticas públicas implementadas por um governo neutro e limitado), o Estado é mais um ator interagindo na sociedade com outros atores igualmente relevantes.

O neocorporatismo surge a partir dos trabalhos desenvolvidos separadamente por Philippe Schmitter e Gerhard Lembruch. Os estudos de Schmitter se firmaram em contraposição à corrente pluralista e à sua interpretação de sistemas de representação de interesses independentes do Estado e baseados na dinâmica de grupos de pressão, decorrendo da análise dos modelos de negociação típicos do Welfare State.

Schmitter (1974) define o corporativismo como um arranjo institucional, um sistema de representação de interesses, reconhecido ou autorizado, ou eventualmente criado pelo Estado, de quem recebe o monopólio da representação das respectivas categorias sociais, com vistas à articulação dessas com as instâncias de deliberação do próprio Estado. Lembruch, paralelamente, desenvolveu sua análise a partir do estudo da cooperação entre grupos de interesse na elaboração de políticas públicas, ressaltando o processo de negociação e a relativa autonomia das lideranças frente aos seus representados. Esse autor compreende o corporativismo como um sistema e como um processo político de intermediação e implementação de políticas - processo que denominou de concertação corporatista (Arbix, 1996:87-91). Sua objeção a Schmitter é quanto à ênfase reservada por este à investigação do impacto dos arranjos corporatistas nos processos de elaboração e implementação de políticas, sem levar em conta a dimensão dos resultados desses processos.

Na análise de Claus Offe (1989) “a dinâmica pluralista dos grupos de interesse tornava suas demandas ‘excessivas’, transcendendo os limites da tolerância da ordem econômica”. Assim, nas sociedades capitalistas com processos democráticos mais consolidados, o pluralismo cede lugar a um coporatismo do tipo societal, em que há uma institucionalização da negociação entre os interesses do capital, trabalho e Estado. Em Estados autoritários, sem experiência plena de pluralismo, de acordo com Schmitter (1974), manifesta-se um corporatismo de tipo estatal no relacionamento entre instituições públicas e sociedade civil, estando o Brasil classificado nesta tipologia. O permanente controle sobre os sindicatos, a restrição à realização de greves e a regulação da representação via concessão do monopólio, são elementos característicos de uma tradição estatal-corporativa (BOSCHI, 1987:166).

A abordagem do neocorporatismo pressupõe a existência do conflito de interesses e de classe na sociedade, mas considera que, a partir da intermediação, tais conflitos possam ser equacionados e a sua excessiva politização impedida, tornando-se os grupos de interesse (sindicatos, partidos, corporações) co-responsáveis pela elaboração das políticas. Em sua visão pragmática, Schmitter (1974) afirma que nas sociedades em que a burguesia não é suficientemente forte e existem grandes demandas sociais o surgimento do corporativismo atende à necessidade de inibir a articulação autônoma por parte de uma classe subordinada, reforçando a paz social. 5

Desse modo, o modelo neocorporatista, como modelo de análise de processos de intermediação de interesses, adequar-se-ia mais às sociedades organizadas do que àquelas com sistema democrático fragilizado, como no caso brasileiro (ZAULI, 1997:51). Neste sentido é que Arbix, baseado nos estudos de Cawson (1985), analisa a experiência das Câmaras Setoriais numa perspectiva mesocorporatista, em que tais arranjos são restritos a setores determinados da sociedade em que haja participação dos trabalhadores.

Portanto, ganharia evidência, sobretudo, o processo de elaboração das políticas públicas, incorporando a participação da sociedade como forma de “neutralizar” o Estado. Ou seja, no modelo neocorporatista, o Estado não é neutro, mas cede parte das suas prerrogativas, delegando autoridade às representações de setores específicos para negociar, junto às agências estatais, a implementação de políticas públicas. O Estado adotaria essa postura, fundamentalmente, em razão da falta de condições objetivas de impor a esses segmentos uma determinada política concebida previamente. Assim, quanto mais articulada e organizada a sociedade, mais o Estado, através das suas agências governamentais, se veria na contingência de conclamar a representação social para negociar políticas. Quanto mais “desorganizada’ a sociedade, mais autoritários os mecanismos de elaboração de políticas públicas, o que poderia variar, inclusive, em função de turbulências conjunturais.

Portanto, as abordagens pluralista e neocorporatista pressupõem sistemas de representação de interesses cuja diferença básica é a obtenção ou não do monopólio da representação por suas respectivas categorias com o aval do Estado. Ou seja, ambas as concepções teóricas consideram a existência dos grupos de interesses atuando na sociedade, sendo que a abordagem pluralista, diferentemente da neocorporatista, prescinde do Estado, ao conceber que as políticas públicas resultam da ação dos grupos políticos na defesa dos seus interesses. A suposição do pluralismo é que, em condições ditas normais, de equilíbrio, a representação de interesses dos inúmeros grupos políticos resulta em benefício para o conjunto da sociedade.

3. Câmara Setorial Automotiva e Regime Automotivo

Nesta discussão das políticas setoriais para a indústria automotiva na década de 90 serão observados os aspectos institucionais e organizativos relacionados ao seu processo de formulação para, em seguida, elaborar-se uma análise comparativa entre essas políticas e as vertentes teóricas já discutidas.

Formalmente, a primeira experiência de câmaras setoriais no Brasil é iniciada com a publicação do Decreto no 96.056, de 19 de maio de 1988, que reorganizou o Conselho de Desenvolvimento Industrial (CDI), dando-lhe a competência para constituir, na Secretaria Especial de Desenvolvimento Industrial (SDI), organismos colegiados com representações de órgãos governamentais e da iniciativa privada, aos quais caberia elaborar propostas de políticas e de programas setoriais integrados. Posteriormente, já no governo Collor, essas câmaras foram substituídas pelos Grupos Executivos de Política Setorial (GEPS)(3), cujas características em muito os diferenciavam daqueles fóruns criados no governo anterior. Por último, no processo de negociação para a aprovação do Plano Collor 2, no Congresso Nacional, foram criadas pela Lei 8.178/91, de março de 1991, câmaras setoriais como instância de resolução de conflitos quanto à política de preços e assessoramento, no âmbito do Ministério da Economia, Fazenda e Planejamento. Somente em agosto de 1991, uma portaria ministerial delega à Secretaria Nacional de Economia (SNE) a definição da competência e abrangência das Câmaras e a designação dos seus membros (ANDERSON, 1999). 6

Ao longo de 1992, não só a Câmara Setorial Automotiva é implantada como estabelece o seu primeiro acordo. Outras 28 câmaras setoriais com 135 grupos de trabalho específicos já haviam sido montados.

A composição, objetivos e funcionamento desses organismos colegiados variaram muito ao longo desses anos. Na década de 80, por exemplo, as câmaras eram compostas apenas pelo setor empresarial e governo, e os objetivos ligados à discussão de estratégias de política industrial não se concretizaram, consistindo apenas em “mecanismos de troca entre Estado e as elites empresariais” (ARBIX, 1996:63). Segundo Anderson (1999), nessa primeira fase das câmaras, os sindicatos não participavam das reuniões por entender que os objetivos do governo estavam restritos ao controle de preços e que as câmaras não tinham qualquer poder decisório, podendo apenas sugerir medidas ao Executivo. Os organismos que substituíram as câmaras, os Grupos de Executivos de Política Setorial, também não superaram os limites da discussão do controle de preços.

A configuração mais duradoura das câmaras setoriais — e a que alcançou maior êxito — começa a ser delineada a partir da necessidade que tem o governo Collor de administrar a saída do congelamento de preços, após o fracasso dos planos econômicos, em 1991. Dessa vez, as câmaras tinham caráter tripartite, com a participação de representantes do Ministério da Economia, dos empregadores e trabalhadores dos respectivos setores produtivos ou das entidades sindicais nacionais. A câmara setorial de brinquedos foi a primeira a funcionar, a partir de junho de 1991, com essa nova caracterização. A Câmara Setorial Automotiva somente seria instalada em 17 de dezembro de 1991, após um ano de grandes dificuldades para o setor, tendo o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo como um dos atores que mais concorreram para a viabilização do evento. A redução dos níveis de emprego do setor, desde os primeiros meses daquele ano, e o anúncio da Ford de que fecharia a divisão de motores de sua unidade de São Bernardo, implicando a demissão de pelo menos setecentos trabalhadores, serviu de estopim para um conjunto de iniciativas do sindicato local (ARBIX, 1996). Diversas medidas foram tomadas, entre as quais uma visita à direção da Ford nos Estados Unidos, com vistas à reversão da decisão da empresa, sem lograr êxito contudo. A discussão sobre o emprego e o desenvolvimento da indústria automotiva no âmbito da câmara setorial realizou-se, afinal, a partir de um contato entre o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, Vicentinho, e o ministro da Economia, Marcílio Marques Moreira, como última alternativa para uma solução do conjunto dos problemas desse segmento industrial.

Até em 1995, quando as câmaras setoriais foram esvaziadas pelo governo Fernando Henrique Cardoso, duas outras modificações, ainda que de menor relevância, foram efetivadas. Com a assunção de Itamar Franco à Presidência da República, as câmaras retornaram à órbita de poder do Ministério da Indústria, Comércio e Turismo e tiveram suas atribuições redefinidas no sentido de reforçar a concepção adotada desde a Nova Política Industrial, em 1989, e de promover acordos com vistas à reestruturação dos complexos industriais e à modernização das relações de trabalho. Em novembro de 1994, visando definir critérios para a instalação das câmaras e acompanhar o seu funcionamento, ou seja, os programas de reestruturação por elas aprovados, é criado um Grupo Interministerial Coordenador das Câmaras Setoriais (GICS). As câmaras setoriais passam a ser definidas como parte das políticas de reestruturação industrial e de estabilização e deveriam ser representativas não só dos principais agentes atuantes na cadeia produtiva, mas também dos consumidores.

Sem dúvida, foi a câmara setorial do complexo automotivo aquela que ganhou maior notoriedade, pela importância da participação do setor no produto interno e pelo peso dos 7 trabalhadores metalúrgicos, especialmente da região de São Bernardo do Campo, no sindicalismo brasileiro. A decisão do sindicato do ABC em participar da câmara setorial representou uma mudança de estilo de atuação frente a uma nova realidade, que marcaria as relações de trabalho a partir de então.

O fim da experiência das Câmaras Setoriais está ligado às características da política macroeconômica, altamente dependente do panorama internacional, de modo que as decisões adotadas a partir de demoradas negociações viravam pó com as bruscas mudanças no quadro econômico. Comin (1998:65) destaca a dependência do Plano Real aos “humores” do mercado, de maneira que “a marca da política econômica é a instabilidade de regras, em termos de sua subsistência, sujeita a reversões, e de timing, extremamente veloz”. Neste contexto de subordinação das políticas setoriais à “instabilidade” da política de “estabilização econômica” (sic), é que se justifica a abrupta mudança das alíquotas de importação. Mudança esta que determinou um crescimento de 179% nas importações de veículos no mês de setembro de 1994, relativamente ao mesmo mês do ano anterior. Diante do novo quadro, as montadoras alteraram suas estratégias de modo a ampliar a participação dos importados no seu mix de vendas, com profundas implicações sobre os acordos estabelecidos na Câmara.

A política de redução das alíquotas de importação de veículos resulta em enorme déficit na balança comercial brasileira. Assim, em março de 1995, o governo decide pela elevação da referida alíquota de 20% para 70%. Com esta medida, busca-se alcançar um objetivo da equipe econômica de estancar o déficit no comércio internacional, especialmente após a crise mexicana, que anunciava a possibilidade de outros países que adotaram planos de estabilização segundo a orientação do FMI serem alvos de “ataques especulativos”.

O Regime Automotivo

Em junho, a MP No 1024/95 inclui novas regras para o setor, marcando, na prática, o fim da câmara setorial e uma mudança importante em termos da política econômica. O estabelecimento de cotas para importação de veículos, a redução das alíquotas de importação de peças e componentes para 2,8%, em 1996, e das de máquinas e equipamentos para 2,0%, foram algumas das medidas constantes da medida provisória. Com essas novas diretrizes, o acordo costurado na Câmara perde o sentido e a idéia de estabelecer regras negociadas amplamente por todos os atores sociais diretamente envolvidos se inviabiliza.

Zauli (2000:70) refere-se à ocorrência de “consultas junto a diversos atores participantes dos interesses organizados no âmbito do complexo automotivo”, precedendo a edição das medidas provisórias que configuraram o regime automotivo. Essas consultas, entretanto, não envolveram todos os interesses organizados e ocorreram num primeiro momento visando “legitimar sua decisão, sem muito sucesso. A partir daí, nem mesmo esta fachada é mantida” (COMIN, 1998).

Um relatório do Ministério da Indústria, Comércio e Turismo, sobre o andamento das câmaras, descreve o quadro que se estabeleceu naquele momento:

"Logo após a câmara de fevereiro, iniciou-se a discussão do Regime Automotivo Brasileiro, que deveria possuir um status semelhante ao argentino, para que o Brasil pudesse assumir um nível de atratividade para novos investimentos semelhante àquele país. A discussão desse regime, que culminou com a publicação da MP 1.024, assumiu tal preponderância para a indústria, governo e trabalhadores, que a agenda representada pelo 3º Acordo ficou obscurecida, migrando para o âmbito da medida provisória a maioria das discussões e providências previstas [...]. O restante dos compromissos do acordo está agora recebendo a devida atenção, uma vez que a locação de esforços dirigiu-se, prioritariamente, à consecução daquela estratégia. Algumas outras ações isoladas foram levadas a efeito por iniciativas do 8 MICT em articulação com outros órgãos do governo (MICT apud ANDERSON, 1999:24-25)." 

Estava sendo implementada uma nova forma de produzir a política setorial. Um processo mais democrático é substituído pelo pragmatismo de atender às demandas de curto prazo da política econômica. As decisões passam a ser tomadas a partir da articulação interna ao governo, predominantemente sob a ótica da política macroeconômica, e, naquele momento, a prioridade era atrair investimentos de forma a equacionar o desequilíbrio das contas externas.

Como já foi salientado anteriormente, o Regime Automotivo Brasileiro começa a ser estabelecido a partir de edição de Medida Provisória reeditada dezesseis vezes, com diferentes numerações(4), ao longo dos anos de 1995, 1996 e 1997 e, finalmente, transformada na Lei No 9.449/97.

Portanto, é correto afirmar que o Regime Automotivo constitui-se de um conjunto de medidas legais, caracterizando-se como uma política industrial. Segundo estudo do IPEA, o complexo automotivo foi “o único setor industrial que contou com um conjunto amplo de políticas de incentivos após o processo de abertura econômica” e o Regime Automotivo representou uma medida especialmente relevante para o governo Fernando Henrique Cardoso (IPEA, 1998).

O regime automotivo caminhou na direção oposta às concepções que propugnavam a total extinção dos tão criticados incentivos e subsídios setoriais, que se constituíram, no passado, numa das características mais marcantes da estratégia de substituição de importações. A integração competitiva do Brasil na economia globalizada não poderia se dar através da competitividade alcançada às custas de generosos incentivos, recursos naturais abundantes ou mão-de-obra barata, rezava a nova cartilha da política econômica. Porém, as vantagens oferecidas pelo Regime Automotivo, aliadas aos benefícios concedidos por governos estaduais e prefeituras, jogaram por terra o propalado “império do mercado”.

Para atender às necessidades da política macroeconômica (de que era preciso estancar a sangria de recursos com a importação de veículos e garantir a realização de investimentos no setor automotivo nacional), o Regime Automotivo Brasileiro representava o instrumento capaz de fazer frente ao Regime Automotriz Argentino, em vigência desde o início da década de 90. Era preciso consolidar o Mercosul, mas, simultaneamente, atrair parte dos investimentos que estavam sendo direcionados para aquele país vizinho.

Por isso mesmo, o Regime Automotivo do Brasil provocou reações entre os parceiros do Mercosul e muita polêmica na Organização Mundial do Comércio (OMC). No âmbito regional foi iniciada a negociação com vistas a um regime automotivo comum. Com os EUA e a União Européia a discussão foi mais dura, sendo feitas concessões pelo governo brasileiro referentes à redução de prazos de adesão e ampliação de cotas de importação, evitando que tivesse prosseguimento, na OMC, uma acusação de prática não-condizente com os acordos internacionais.

Ao Regime Geral seguiu-se o Regime Especial, voltado para as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Posteriormente, foi editado o Regime de Desenvolvimento Regional, que garantiu condições especiais para a transferência de uma fábrica da Ford para a Bahia. 9

Câmara Setorial como arranjo mesocorporativo

Glauco Arbix, em obra já citada, que analisa os primeiros anos da Câmara Setorial da Indústria Automotiva, ao procurar demonstrar as características daquele processo, enquadra-o no campo dos estudos neocorporatistas, considerando que a experiência brasileira ilustra que o principal ator nos arranjos neocorporatistas continua sendo o Estado. Ressalta que não pretende sugerir que esses mecanismos de negociação passaram a se constituir em tendência no país e que o surgimento dessa prática indica que o Estado não teve condições de impor sua política para um dado setor da economia. Assim, entidades representativas e Estado não conseguiram, isoladamente, viabilizar políticas independentemente do comportamento dos demais atores. Nas palavras de Arbix, “(...) o Estado opera, em geral, de modo a proteger a acumulação do capital. No entanto, por ser distinto de um ‘comitê executivo da burguesia’, o Estado precisa legitimar a sua intervenção junto aos representantes tanto do capital quanto do trabalho” (1996:108). Na sua empreitada de analisar a experiência da câmara setorial automotiva à luz da abordagem neocorporatista, no entanto, o autor se ateve não ao interesse geral do Estado, mas à compreensão do sistema de relações de poder de uma parte do sistema estatal voltado para a produção industrial.

Zauli (1997), concordando com Arbix, considera que a qualificação analítica se afasta do modelo pluralista liberal, aproximando-se do modelo corporatista societal, especificamente neocorporatista e, mais ainda, mesocorporatista para a câmara automotiva, se apóia em alguns aspectos:

"Em primeiro lugar (...) tem-se um processo de intercâmbio político entre diferentes agências estatais e um número limitado de organizações de interesses não-competitivas, funcionalmente diferenciadas, em boa medida organizadas hierarquicamente e detentoras de um monopólio da representação de interesses promovido e legalmente mantido pelo Estado. Em segundo lugar (...) o que de fato ocorreu foi a elaboração, implementação e sanção de políticas “quase-públicas” de recuperação do setor automotivo, que obscureceram as fronteiras entre “inputs” e “outputs”, “público” e “privado”, entre “Estado” e “sociedade”. Em terceiro lugar (...) as organizações de interesses que participaram de tal arranjo eram relativamente autônomas diante do Estado e estavam engajadas em um processo de negociação e compromissos de mão-dupla, em vez de sujeitas à imposição de medidas e comportamentos ditados pelo Estado. Finalmente (...) os atores envolvidos nestas negociações estavam organizados setorialmente, e a mobilização de sindicatos, associações empresariais e agências estatais com responsabilidade sobre as políticas relevantes para o setor automotivo norteou-se pela necessidade de uma reformulação e recuperação dos indicadores de desempenho do complexo automotivo (Zauli, 1997-96-97)." 

Sem dúvida, a Câmara Setorial da Indústria Automotiva, como mecanismo institucional avalizado pelo Estado e constituído de representação limitada de grupos de interesse para debater e deliberar sobre políticas públicas, pode ser enquadrada como um arranjo neocorporatista ou corporatista societal, atendendo, particularmente, ao definido por Cawson (1985) como mesocorporativismo. 10

Observe-se que a Câmara sobreviveu pouco mais de três anos, em meio a um processo político conturbado, atuando concomitante a três presidentes da república, um impeachment, alguns planos econômicos, particularmente o Plano Real, que marcou uma reorientação importante da política macroeconômica. Por isso mesmo, a Câmara esteve sob ameaça de descontinuidade, o que revela a precariedade do arranjo. Para reforçar esse argumento, deve- se levar em conta que, apesar de terem sido implementadas várias câmaras setoriais, poucas tiveram uma atuação efetiva e nenhuma delas obteve destaque comparável à câmara do setor automotivo. Isso reforça o caráter meso da Câmara Automotiva, coexistindo com formatos pluralistas no nível geral da sociedade.

Regime Automotivo e abordagem pluralista

Por tudo o que foi exposto, fica evidente a diferença entre os dois modos de se fazer política setorial. Zauli (1997:143) considera ter havido uma centralização de decisões sobre a política industrial do setor, frente à tendência anterior de compartilhamento com outros atores do processo de formulação e implementação de políticas. Com o Regime Automotivo, observa-se que as decisões governamentais foram tomadas visando interesses supostamente da economia e do Estado, indiferente à existência de divergências internas ao governo e entre este e as principais representações dos trabalhadores e do capital.

Como observado nos modelos pluralistas, no processo de elaboração da política setorial não há um número determinado de grupos de interesses participando do processo de negociação, os quais, assim, desenvolvem-se sem que o Estado lhes dê a chancela da representação social, sem que se institucionalize o debate sobre as várias alternativas de medidas a serem adotadas. Simultaneamente, o poder de pressão, o lobby exercido pelos atores com maior acesso às instâncias decisórias, permite que alguns desses sejam mais beneficiados que outros no entrechoque de interesses.

Comin (1998:189), ao descrever o novo processo de elaboração da política setorial, comparativamente ao período das Câmaras Setoriais, afirma:

"Mal havia se consolidado o novo arranjo e começa um rápido retorno aos velhos métodos de elaboração de políticas no Brasil: os acordos palacianos estabelecidos diretamente entre autoridades governamentais e os grandes interesses empresariais passam a comandar o processo, excluindo os demais segmentos da sociedade, trabalhadores, consumidores, pequenas empresas, etc., e mesmo do próprio Estado, Congresso Nacional, Confaz, governos estaduais, etc."

O mesmo ponto de vista é corroborado pelo movimento sindical. Ao analisar a política setorial, o Sindicato do ABC identifica entre os principais problemas a previsão de queda no nível do emprego, apesar da implantação de novas plantas, e a piora nas condições de trabalho e salários. Para o sindicato, “o governo brasileiro escreveu o novo regime sem considerar o projeto de comércio exterior discutido na Câmara Setorial Automotiva durante os anos de 1992 e 1993. Os benefícios foram dirigidos para as montadoras, e medidas de garantia para os fornecedores e trabalhadores foram retiradas” (DIEESE/SINDICATO DO ABC, 1997:6).

As montadoras aparecem, sistematicamente, como o segmento ou grupo de interesse que obteve mais vantagens junto ao Estado. Por liderar a cadeia produtiva do setor automotivo, cuja importância para a economia nacional já foi destacada, as montadoras foram beneficiadas com um tratamento, no mínimo, diferenciado.

Neste sentido, cabe destacar as conclusões da auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU, 2000), que, baseada em informações privilegiadas, obtidas em função das competências constitucionais que lhe foram atribuídas de fiscalizar as despesas públicas, concluiu que:
‰ as montadoras absorveram 86% da renúncia fiscal decorrente do Regime Automotivo, em 1996, 1997 e 1998, privilegiando setores altamente capitalizados em detrimento de outras atividades econômicas e sociais; 11
‰ considerando a participação percentual no comércio internacional, em 1998, das empresas do setor automotivo, as montadoras corresponderam ao único segmento que apresentou déficit, corroborando a idéia de que o Regime favoreceu as empresas mais capitalizadas e intensivas em capital, atuando de forma a favorecer a concentração de capital;
‰ nos primeiros três anos do Regime Automotivo, as montadoras obtiveram a pior relação entre renúncia fiscal e exportações, quando comparadas com os segmentos de autopeças, máquinas e equipamentos agrícolas e reboques e semi-reboques; considerando a relação entre impostos não-pagos em função da renúncia fiscal e maquinário adquirido, são as autopeças que apresentam os melhores resultados associados à modernização do parque industrial.

A pressão política unilateral sobre o governo, fora do contexto de um debate em que os interesses do conjunto dos segmentos envolvidos fossem levados em conta, pode ser observada em diversos momentos do processo de elaboração e implementação da política setorial: na fixação de alíquotas diferenciadas para montadoras e autopeças — favorecendo a desnacionalização do setor; na aprovação do Regime Especial e do Regime de Desenvolvimento Regional; na falta de contrapartidas sociais pelos beneficiários da renúncia fiscal — na forma de compromissos com geração de empregos e prática de salários próximos da média do setor; e, mais que isso, na constante ameaça de demissões em massa caso os benefícios não fossem concedidos.

Se não nos faltam elementos suficientes para classificar o Regime Automotivo como característico dos modelos pluralistas, podemos tirar esta conclusão até mesmo pelo contraponto com a prática das Câmaras Setoriais. Como explicar esta trajetória, ou seja, abandonar processos mais participativos e cujos resultados são considerados positivos, por um processo de decisão mais centralizado que tem sido avaliado com restrições pela maioria daqueles diretamente interessados no setor?

Analisando as motivações para a retomada, em novas bases, das Câmaras Setoriais na era Collor, Arbix (1996) considera que aquela iniciativa correspondia a uma necessidade daquele governo de legitimar-se frente aos insucessos da sua política macroeconômica. Similarmente, podemos dizer que uma das possíveis explicações para que fosse alterado o direcionamento do processo de elaboração/implantação da política setorial no sentido de práticas pluralistas foi o relativo sucesso do Plano Real no combate à inflação. A credibilidade popular obtida pelo o governo Fernando Henrique Cardoso para conduzir a economia, independentemente de análises mais profundas sobre as conseqüências desse modelo econômico, pode ser apontada como o fator primordial para que, em nome da necessidade de adotar-se medidas que ajudassem a consolidar o Plano Real, ocorresse uma centralização de decisões na equipe responsável por conduzir a política econômica brasileira. Essa interpretação permitiria compreender a ascendência dessa equipe sobre as demais agências governamentais na definição dos parâmetros da política setorial.

4. Considerações finais

Pelo exposto, fica evidenciado que a análise comparativa entre a Câmara Setorial Automotiva e o Regime Automotivo resultou na observação de algumas diferenças em relação ao processo de formulação e implementação, evidenciando:
- a ocorrência de arranjo corporatista ou mesocorporatista, em que o Estado reconhece autoridade a um número limitado de 12 representações sociais, que participam de negociações com vistas à formulação de acordo sobre a política setorial, corroborando as conclusões de diversos outros autores quanto ao caráter corporatista da Câmara Setorial Automotiva;
- que as circunstâncias que envolveram a decretação do Regime Automotivo se ajustam às concepções pluralistas segundo as quais grupos de interesses disputam de per si benefícios junto às agências governamentais, configurando um sistema de pressões sobre o governo, o qual também passa a ser interpretado como um grupo de interesse;
- que a implantação do Regime Automotivo Brasileiro (RAB) se deu através de uma ruptura com a Câmara Setorial Automotiva, não havendo consulta sistemática ao conjunto dos setores interessados, em particular à representação dos trabalhadores; ao contrário, a decretação do RAB correspondeu ao descumprimento de acordo que acabara de ser formalizado;
- que durante a vigência do Regime Automotivo ficou caracterizada uma condição de interlocutor privilegiado das montadoras junto às agências estatais, em detrimento dos demais segmentos sociais empenhados no desenvolvimento setorial, que possibilitou o exercício de uma maior influência nas decisões governamentais, fato este que pôde ser constatado inclusive por Auditoria do TCU, conforme relatado no capítulo terceiro(5);
- que, por outro lado, o arranjo neocorporatista permitiu uma maior democratização das discussões, definindo as Câmaras Setoriais como espaço de negociação, havendo maiores possibilidades de interferência da representação dos trabalhadores e mesmo de outros segmentos da indústria e serviços que guardam contradições com as montadoras, a exemplo da representação das empresas de autopeças, bem como concessionárias;
- que a adoção de um ou de outro formato de elaboração/implementação de políticas setoriais parece estar relacionada à necessidade do Estado de legitimar a sua ação. O assunto pôde ser analisado em dois momentos. Primeiro, quando o governo Collor precisou administrar a saída do congelamento de preços, após o fracasso dos planos econômicos, em 1991. A necessidade de apoio social à nova alternativa de política econômica proposta pelo Ministério da Fazenda levou o governo federal a negociar uma saída para a crise através de um arranjo neocorporatista, o que levou à disseminação das Câmaras Setoriais, em particular ao surgimento da Câmara Automotiva.

O retorno a práticas características de abordagens pluralistas, com o fim da experiência das Câmaras Setoriais, segue a mesma linha de raciocínio, mas em sentido inverso, e ocorreria no governo Fernando Henrique Cardoso. Dessa vez, a obtenção do apoio social ao combate à inflação a partir do Plano Real, sustentado por grande campanha publicitária desenvolvida nos meios de comunicação de massa, permitiu ao governo federal substituir os procedimentos de consulta aos segmentos 13 interessados da indústria automobilística por métodos mais condizentes com suas necessidades.

No caso específico, sendo a nova política setorial baseada em atração de capitais estrangeiros, necessários à viabilização da política macroeconômica em vigência, e considerando o quadro de vulnerabilidade econômica externa a que esta política conduziu o país, tornava-se indispensável uma flexibilidade no processo decisório. Tal flexibilidade significava dar liberdade à equipe econômica para tomar decisões, sem que fosse necessário estabelecer consultas aos setores envolvidos, o que normalmente demanda tempo e barganha política. Vale destacar para reforçar esse argumento que, nesse período, os investimentos automotivos realizados no país situavam-se entre aqueles de maior vulto em todo o planeta.

As abordagens pluralista e neocorporatista fornecem um quadro explicativo sobre a atuação de grupos de interesse na formulação das políticas públicas para o setor automotivo. Os resultados obtidos com os diferentes arranjos são compreendidos, portanto, como decorrência dos métodos utilizados, e a adoção de uma ou outra alternativa de elaboração de políticas públicas é vista como relacionada a conjunturas específicas, fortemente influenciadas pelo comportamento da economia.

Importantes aspectos teóricos quanto ao processo de formulação das políticas públicas requerem melhor consideração. Vale destacar, em especial, o fato de que, historicamente, o modelo neocorporatista surge não só em contraposição ao pluralista, mas também substituindo-o, como a representação de um modelo democraticamente mais avançado. Poderíamos concluir observando que esse fato revelaria uma manifestação de retrocesso em um aspecto do processo democrático, mas isso requer análise mais profunda. Por outro lado, afirma-se a necessidade de verificar até que ponto o conceito de neocorporatismo é aplicável à experiência das Câmaras Setoriais.

Notas

(1) Desde 1994 a dívida pública explodiu, mais que decuplicando: em agosto de 2002, a dívida pública representava 62% do PIB ou 820 bilhões de reais. (2) Essas teorias admitem nas situações sociais uma condição de jogo, pressupondo duas estratégias: solidária e egoísta e de, pelo menos, dois jogadores. A “arrumação” correspondente às possibilidades de estratégia resulta no Dilema do Prisioneiro, Jogo da Galinha, etc. (BARRETO, 1998). (3) A composição desses grupos não estava baseada na representação formal de entidades ou atores sociais relevantes; sua ação não tinha caráter deliberativo e dependia de aceitação governamental, a posteriori, não havendo, portanto, compromisso governamental de acatar as soluções propostas, nem tampouco agenda ou programa de negociação (ANDERSON, 1999). (4) Em função das inúmeras reedições dessa MP, é possível encontrar nos documentos, textos de discussão, artigos e livros, referências aparentemente desencontradas sobre a legislação que originou o Regime Automotivo. A MP 1.024, de 13.06.95, foi reeditada com os números 1.047, 1.073, 1.100, 1.132, 1.165, 1.200, 1.235, 1.272, 1.311, 1.351, 1.393, 1.435, 1.483, 1.483-14, 1.483-15, 1.483-16, 1.483-17, 1.483-18, 1.483-19, 1.536, 1.536-21 e 1.536-22, até ser aprovada pelo Congresso Nacional e promulgada sob o número 9.449, de 14 de março de 1997. Os decretos 1.761/95 e 1.863/96 regulamentaram alguns dispositivos estabelecidos nas MPs. 14 (5) A edição de 2 de dezembro de 2001 de O Estado de São Paulo dá conta de uma pesquisa desenvolvida pelos economistas Maria Abadia Alves e Sérgio Prado, no Instituto de Economia da Unicamp, sobre a relação entre investimentos realizados por três montadoras, no âmbito do Regime Automotivo Brasileiro, e os incentivos fiscais a elas concedidos. A pesquisa, que tomou por base a implantação da GM, em Gravataí; da Mercedes-Benz, em Juiz de Fora; e da Renault, em São José dos Pinhais (PR), concluiu que, nos dois primeiros casos, o total dos incentivos e desembolsos dos tesouros estaduais será, ao longo do período de vigência dos benefícios, superior ao investimento realizado pelas empresas. Quanto à geração de empregos, os pesquisadores calcularam que, nesses empreendimentos, o custo por emprego esteve em torno de 328 mil a 400 mil reais. Segundo o estudo, pequenos empreendedores conseguem abrir até oito postos de trabalho em três anos, com investimentos de 250 mil reais, sem nenhum subsídio. Esse trabalho, elaborado pelos pesquisadores da Unicamp, reforça os argumentos aqui desenvolvidos de que as montadoras foram amplamente beneficiadas com a política setorial vigente a partir de 1995, e que o discurso oficial sobre a geração de empregos tinha uma função de justificar perante a opinião pública a concessão dos incentivos.

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